Ritornelo

16/11/2025

No pátio o movimento de carruagem, faróis, no pátio sobretudo a fria luz azul, de onde, presa de penumbra real, a ideia do sublime sequer é concebível, nem mesmo pelo ímpeto de redenção. Que toda paisagem carregue atmosfera grave, elevada, no rastro do serpenteio de correntes de criaturas mitológicas, ou mesmo suspire em desolação, carpe -- debalde seria, porque se desolam no chão sombra e poeira, real consciência resoluta da vida a desenrolar seca. 

Talvez restem só meandros esparsos, redundam sempre em discurso que vem à vida natimorto. Que dizer, afinal? Mesmo na música tenho sentido realmente apenas as passagens cheias de hesitação e falta. O tato das coisas se comprime, com o passar dos dias se é entregue ao pendular movimento do tempo cronicamente perdido, em meio a este luzir frio destituído e que, ainda assim, diz estremecimentos, entrecortados, esparramados pelos cantos. 

Expedição

29/06/2025

A expedição aparelha iminente partida, dentro, dentre homens a transbordar em tropel, fervilha o gume da entrega inconteste, de encadeamentos propositados e bem dispostos no mundo, mesmo quando força violenta os parte prostrados no chão. Ponto de seu encontro a partir de espaço ignorado onde se esparramam outeiros; a encenação entusiasmada de jogo sendo a fantasia possível, pois a um só tempo alça por sobre a cabeça todo o amplo espaço e provê chão não obstante o contínuo erodir terreno sob os pés. E assim, a expedição acaba por ultrapassar margens, escarpados, remexe o pó da terra, projeta no espaço aberto gestos estrepitosos. E o sonho que resta é sentir o que se viveu nessas paragens. Parte, segue por linhas ora tortuosas, mesmo íngremes sublinhando triunfos, ora repassadas de emboscadas e cicatrizes, sobe, roda.

Céu inquieto em meio a nuvens bruxuleantes, fantasmas terríveis, e então larga faixa de sombra recai sobre cantos e ruas, onde há silêncio, apenas rumores vagos de gente piscam, cães e gatos. O recolhimento decidido, enrolado tepidamente em consolação ou esperança — redenção? Ou simplesmente em desfalecimento qualquer.

Arpeggione

20/05/2025

O sentimento à beira de paragem inútil de beleza na ressonância de um instrumento condenado ao desuso. Ou por dentro da tessitura de livros perfeitos embora inacabados. A vocação extenuada e extenuante, a entrega absoluta de uma vida, o sacrifício. 

Não, nada disso. Nem de longe a contrição de cavatina, tampouco o mistério de monumento ignorado.

Ao arrematar os últimos ajustes da escrita, ao sair de um mero texto meu, me parece que acabei por me desviar. Para além de palavras que ecoam obscuramente à guisa de gracejo no vazio, o pretendido cerne não foi alcançado, sequer assunto, e mesmo nessas bordas resta imprecisão. 

Ao lado a sala de mobília estanque se abre para janela que recorta a noite de telhados empoeirados, a lua de cobre, a cerração varrida devagar pelo vento. A armação do dia repousa. 

Os ritos do trabalho e o tédio encorpam, por caminhos de aspecto diferente, a mesma ausência jazida, e privações familiares e já condenadas a caducar carregam um pasmar renovado. 

Os dias se acotovelam entre si, desfolhadas pálidas as reminiscências do movimentar vão, e, em perspectiva, se assomam à porta feito a descoberta de um crime hediondo. O desencadeamento banal de todos os dias, se imaginado para amanhã, se arma insuportável.

Penso em perfis. Não personagens, tipos sociais. Em ideia fixa de gente vaidosa e prática, de gente a girar noutra rotação de vida, com a afirmação do jogo.

E inutilmente, nos largos e vagões, em meio a itinerários, outros empregados carregam o enxofre de mal-estar e descontentamento clarividente do que seria a justa distribuição das glórias, prazeres e matéria; ou repisam as tramas e história de um conflito.

Segue afinal a estourar toda sorte da banalidade na cidade. As anedotas, os amores, as dores; até mesmo, de outra ponta, assassínios e manias mórbidas etc. Os copiosos desfechos e recomeços… e então? a rigor, sim, a paragem inútil. Estanco. Nos meandros da mágoa sublinhada, resquícios da absurda crença do impossível. 

Careta

13/04/2025

Ensimesmado quase sempre, cismado outra vez. Antevejo gárgula que afinal por aqui não existe e, assim, nada de real projeta no ar. Antevejo o peso de sinos na atmosfera da cidade babilônica. A urgência de trombetas. 

Já o céu verdadeiramente sorriu, as nuvens de tecido perfiladas em linha, não havia rasgo, fissura, pois entre os espaços de descontinuidade do tear havia o azul suave do céu. Convite, afirmação da vida. 

Penso em ler Dom Quixote, e esta mera ideia já é uma recordação de que a literatura me é fundamental. Insofismavelmente, bem de uma vida, pois a tenaz negação não pode se criar. 

Porém… aqueles escritores de virada de século, cismados na ideia fixa de miasmas, vermes, putrefação, aquelas almas sensíveis tremeluzidas pela miragem maldita de orgias, pela vertigem da imensidão dos mares, firmamentos e astros, aqueles corpos assaltados pela tuberculose, aqueles nomes de assinatura de bilhetes suicidas nos jornais.

Ah!, o bem fundamental não basta, valioso por não ter serventia na encenação prática. E assim, as passagens divinas se abrigam num baú largado ao canto, e tudo o mais pulsa enquanto desengano nauseado (o Mercador de Veneza bem que poderia ser uma tragédia. Antes do gesto de grande amizade, antes da filigrana do ódio, antes do caso de perfeito amor encenado — homicidas sequer padecem de estremecimentos tamanhos).

A terra respira inconteste, firmam tempo e espaço, com as batidas dos mares, as estrelas estonteantes, ecoa nos tetos dos salões música de outro mundo, Mozart! Aquele engenho humano raro.

Porém… porém, sob a miragem de silenciosa reunião da divindade, a trazer o veredito, a mera afirmação terrena nem precisa esboçar a defesa da vida. Enquanto a culpa estéril se aprisiona na mudez, concentra sofrimento de uma dor de nada que punge o redor alcançável. E então, o rosto, também verdadeiramente, finca careta no espaço movediço. 

Cântico mudo

31/03/2025

A madrugada se alarga no tempo, estancada. Neste quarto, de novo. De novo sombras, luzes douradas na rua vazia. O sono esparramado recepciona estremecimentos de doença estacional no corpo dorido. 

Chega ao termo da vez a vigília. Faíscam na mente reminiscências não de momentos cristalizados na vida mas de recortes de sentir em si, erguidos no ar, avulsos, perdidos. 

E então o dia plantado se efervesce, ofuscante em sua opulência de brilho. Rasgo a luz, caminho pela cidade rumo ao trabalho, vejo edifícios, escadas, ruas e esquinas. A construção de grandes engenharias e a força das mãos de trabalhadores fazem mover, o céu ao fundo, guindastes suntuosos, pó e ruídos. 

Pressinto a vinda da convalescença. A palma de minhas mãos se afunda na terra, no arco de seu movimento, pressinto, poderia ser criado engenho de uma obra, obra inútil de um circunlóquio copioso e que ecoa o que deixou de ser, em alheamento e renúncia. Em qualquer aplicação o tempo é o mesmo.

Penso em convalescer. Sorrateiramente as inquietações de todos os dias se armam no respirar que, pouco a pouco, volve desembaraçado dentro do peito. Que se desencadeiem as contradanças da negação, que se encorpe a sombra dos rastros da angústia já familiar, hoje revisito aquele silêncio remoto, hoje tenho olhos apenas para a palidez dessas flores sem afirmação, em meio às quais não há palavra a ser dita. 

Rua

03/03/2025

Madrigal que se faz para o silêncio, cujas quadras são sombras de folhas de canteiro que se movem leves ao vento. Toda ternura do mundo, toda por ser a única.

É preciso fechar a rua, adorná-la, pendurar fio de luzes em meio ao cair da noite. A ponte se ergue do chão, prescinde de qualquer engenharia, as prendas da criatividade vêm da ausência de projeto.

Ponte avistada, pés sobre a lombada a alçar o corpo, bicicletas trocadas, curvas do asfalto como mero pretexto do movimento de regressar, jamais chegada ou partida, sons derrubados de uma não música, ritmos sem dança, quadrilhas sem pares. E o topo das árvores anciãs alonga a sombra no chão, estadia de um repouso que se abandona no tempo. 

O desenho, traços e cores juntas, nada diz. No canto do quintal, as costas curvadas, os olhos rijos, as mãos a segurar o pó do chão, singela expressão, só assim, surge no espaço, da janela se move, criada para o mundo. 

Nas mãos de Deus

26/02/2025

O olhar atravessa as paredes deste quarto cerrado, intuo o que está além perdidamente. Dentro, tudo assentei. Se me esboçou ímpeto violento de revolta, discurso de desespero a clamar por abrigo, por sinal, de desagravo que seja. Não houve. E tudo se queda assentado. 

Entre as paredes que se fecham não há virtude, prenda de vocação, tampouco aquele entusiasmo que faz o gesto da mão capturar jardins e montanhas fora. Dentro, cada coisa em seu canto se inquieta e estremece, cada coisa em seu canto assentada. Para ser diferente precisava ter nascido outro.

Sombra do que pode ser prodigioso, se encorpa em demasiado peso a visão do terror, igualmente possível. Porque, se iguais, triunfa o maligno.  

De todo modo, o discurso se faz vazio — ah, revolta emudecida, que importa afinal? —, o que está além das paredes compõe fantasmagoria de sonho sem linhas fronteiriças, luzir de estrelas, balançar de cortinas e nuvens, ramagem refrescante, criaturas mitológicas, feras e bestas, corrida de bruxas, demônios terríveis. 

Tudo assentado, pulsa, se dissipa o lamento, é vida no contínuo fenecer abandonado em si. 

Repente

22/02/2025

Rastros de luz pousam sobre a fiação postada alta, se vê o comboio surgir no horizonte, lá se demorar, domesticado nos trilhos, até que chega, a maquinação se arma desajeitadamente, o aço é escama solta e alongada no ar, sua fronte, peso aniquilador. 

Talvez fulgure alhures o fascínio dos astros, talvez o recorte daquele mesmo horizonte se descortine além, prodigiosamente, o peito cheio, os olhos a brilhar ante a beleza do esplendor da natureza. 

Aqui, a luz de bronze pousa sobre os fios. O comboio que vem. O ruído seco, o regresso, as partidas, cortadas as palavras de despedida — repetição de adeus. E se exaure, estoure, martele o aço, estilhace e esmague o corpo.

Cântico e marcha

10/02/2025

Penso na conquista do ser segundo Kierkegaard, na dificuldade extrema dessa decisão que nos migra o olhar e sentir para o sobre-humano, instante de visão translúcida pendido à eternidade. E nas odisseias do carma, nos moinhos do sofrimento, no ouro incerto e ignoto da abnegação. Na parolagem do amor enquanto único princípio possível.

De soslaio, sinto a conquista que se encerra na encenação prática, os jogos. Noto a apologia das viagens, dos momentos de delícias e pequenos prazeres. O direcionamento do que é funcional e bem desempenha. E mesmo o êxtase, o entusiasmo ante os pórticos da grande aventura.

O vestígio no chão que é matéria mas também reminiscência na alma, quando se conseguiu unir vida e mundo.

Se reconstrói a todo instante o tracejar de afirmações ou negações, já abençoadas, já petrificadas em maldição, já justificadas, o esvair da obra sonhada, margem que se esfumaça, espargir do que compôs mágoa insolúvel.

Apoteose do sono

07/02/2025

Escrever o Livro do Desassossego é incomparavelmente mais difícil do que escrever Grande Sertão: Veredas. 

Nuas, a tristeza e a ironia. A ironia em si não é virtuosa. Pelo contrário, geralmente é algo ruim, mera sordidez maliciosa, artimanha. Assim, é burilada pelo gênio humano, raro um ironista grande. Mas, mesmo a ironia valorosa rapidamente escancara seu curto alcance.

O nada escavando abismos, sob a perda. Foi preciso esculpir os flancos da tristeza, revirá-la, ir ao avesso, e nas margens do alheamento se avolumam, fantasmagóricas, elipses, em cujo leito se projetam suspiros e passagens divinas.

Várzea e paragens

07/02/2025

Atravessávamos os meses da fase outonal da graduação, quando se soube do suicídio de um colega de turma. Então andava sumido, aparecia pouco no campus, mas quando vinha procedia quase sempre da mesma maneira, chegava atrasado e, pouco depois, com o texto em mãos, participava ativamente da aula, e suas perguntas não se demoravam por sobre algo específico ou detalhe, parecia movido por inquietações e reflexões ambiciosas. Certa vez, quando fiz parte de um grupo de atividade junto com ele, via como digitava no teclado do computador, ignorando por completo a sinalização da correção ortográfica automática, acentuava manual e instantaneamente as palavras. No mesmo semestre, durante um intervalo, notou que eu estava sozinho num banco, me chamou para a roda. Diante da notícia do suicídio, parte dos colegas acompanhou os ritos, o curso organizou, para uma semana, roda entre alunos e professores e uma apresentação ministrada por alguém sobre saúde mental, além de manifestações memorialistas no saguão da biblioteca. Ele escrevia, leram um trecho. Vieram ver as manifestações seus pais, tão miudinhos, introspectivos. Na roda entre alunos e professores, depois das falas, e o encerramento da reunião a se esgueirar na sala, o professor Agnaldo disse que, na semana imediata, as coisas voltariam a integrar a cadência do moinho satânico. 

Fecho

23/01/2025

Por um longo tempo, acerca de tudo que era coisa da vida e mundo, pude exprimir ditos e falas que pendiam agudamente para a negação, ao modo de dúvida provocadora, ao modo de crítica implacável das pessoas e sobretudo dos modos de vida vigentes, e cujo escárnio, ao encenar certo pessimismo, na verdade fora sempre representação externa de uma defesa partida dentro, fora sempre tão somente antecipação e afã. 

Agora a afirmação em si ou afirmação que nega me é de todo modo tola, inútil. A escala de preferências, as encostas e escarpados do entusiasmo e da desilusão se me transformaram num quadro abstrato, numa fumaça de aspecto turvo e desagradável que se esvai, desmancha no ar, dando lugar a sopro renovado igualmente de aparência incômoda. 

Diante de tal carrossel soturno faço certo gesto dorido de renúncia, padecendo do transtorno vindo da falta de adaptação às coisas da vida e mundo, enquanto que o movimento arcaico a estremecer coluna reside noutro torvelinho opaco, origina a sensação, presa na garganta, de que a existência me é um mal-entendido, um presente não solicitado remetido do avesso. 

Poderia olhar o que comove, sentir, subtraí-lo da sordidez generalizada, lá me refugiar, mas a mera centelha daquela sensação abre os traços de um largo campo, onde o tempo passado pesa por ter tardado, onde sempre será inútil mover lábios e pensamentos. Caem penas da mão em cuja palma convergem os dedos que se encerram, aniquiladores.

Coração frio

13/01/2025

Escapa no céu facetado por matizes noturnos pálidos, foge filamento fantasma de ventos que são mau fruto de visão agourenta. E tudo parece correr a partir dali, se sente o espaço carregado, pulsa inclinada a flor do desespero, se pressupõe trama que compõe um estar trágico, os sentimentos altaneiros, com o amplo espaço do mundo aberto engolido pelo cair da noite, pelo subir dos rios densos, pelo avanço das sombras inquietas. Por certo, não é no desfecho que nasce a tragédia. Antes, antes de quaisquer considerações acerca da tragédia, o espaço da vida concreta é mero encadeamento comum e cinza. Ainda antes: o faiscar de visões engenhosas do que é prodigioso, os pés firmes no chão, até que do suplício pressuposto a mentira fizera dor concreta que estremece verdadeiramente a espinha. 

Corre, escapa, desemboca ante o campo, sobre o qual deita o luzir do dia, ao canto o caramanchão vazio, o carrossel desativado. Perdulário de bens ignorados, é certo que nas danças da vida não me encaixei, fracassadas as tentativas, mas não houvera nestas ânimo genuíno, de ponta a ponta, e regresso agora sem poder dispor de reminiscências de pequenas conquistas e regozijos, enquanto que mesmo do limiar da partida já não conseguia sequer respirar desembaraçado, os olhos duros e esbugalhados. O dia se estanca amarelo, eu marasmo, as coisas ao redor se criam, vêm a noite, o sopro do vento, as nuvens fantasmas. 

Elipses e acorde

04/01/2025

Rompe o dia, luz branca se derrama sobre os pisos, sobre as paredes, sobre pias, se abandona no chão livro amassado, as palavras puídas. Por um instante fulgura na mente a visão de viagens impossíveis, de aventuras não realizadas, ao lado os sabores do que é local, o esplendor das paisagens; são todos instantes a melodia de canções de ninar entoadas a um sonâmbulo, as cartas não respondidas, as conversas que não se encetaram jamais. Enquanto nuvens se avolumam, se juntam, e pode ser que estourem apoteoses na atmosfera, estourem também carrosséis ruidosos de ritmos e dança em solo. 

Acordo. Há o peso de horas condensadas em quarto de hora, olho as paredes, a mobília, imagino a maquinação do dia. Mas sobretudo desperto do nada do sono, jogado à boca da vida.  

A apoteose da arte, o virtuose indefectível e severo que, com rigor técnico, desperta Gaspard de la nuit, desperta a Hammerklavier, com rigor técnico e espiritual, e tantos outros rasgos da expressão… 

Sim, rompe, pode ser, mesmo, do que me cabe, que estoure a litania da arte, já em sua iminência tudo sentido pobre e nu porque se abraça mas não se provê o impossível que inclina a subir.

Pois bem. Sinto que caminhei dentro do nada. Seria inaceitável outro ser eu, quem caminhasse justamente pela minha vida, tamanha a paralisia e perdição, ao mesmo tempo se dissipam no ar a inquietação e as esperanças dos anos findos, o que passei se me afirma hoje como nada sendo ao pé da maquinação da vida a vir, espetáculo patético repetido, que transita entre escarpados e quedas. 

Me ergo do leito afinal. Ah, os pisos brancos, a natureza e seu esplendor, o ar suave que enche o peito de frescura, as árvores que despejam folhas sobre o asfalto escuro! Me pesa, é verdade, esta minha indiferença ante o alvorecer. De maneira brusca, sem pensar, sem pretender evocar o estado de contemplação da vida, busco somente, só, tardar. 


Salix babylonica

27/12/2024

Nas épocas de festividades se descolam dos recantos as canções sucessos do momento, contíguo ao apelo que têm do sucesso que cativa há nessas canções certo fascínio, carregam expressão da vida vivida daquele recorte estacional, carregam os sabores, exprimem o modo e as histórias copiosas de amar, ressoa a vida que me escapa, em alheamento.

Brota à garganta suspiro que cala. Travo. A topologia de preces aniquiladas é, afinal, mera abstração, quando esticado o sofrimento até arquear, e nisso não há consolo algum, somente rememoro quando o tempo se fincava abandonado, balão no ar, quando me demorava no quintal ao pé de duas escadas, cenário de toda sorte de brinquedos, personagens beligerantes em meio a lutas épicas, jogadores em meio a copas do mundo, no caderno mapas geográficos de países inexistentes. 

Certa vez me interromperam a brincadeira, para que pudesse, com eles, pisar sobre a nova avenida inaugurada no dia. Avenida grande, ainda não aberta para carros, cinza e branca, e os muitos visitantes errantes e dispersos não dissimulavam a sensação de solidão que o grande espaço escancarava, liso e repassado de pó de construção. 

Avenida Novo Osasco. Falavam então que tudo da cidade é outro, no lugar houvera grande rio que invadia as ruas, as casas, alagava. Depois, vieram a recortar o rio encanado grandes listras de pedra, e até esses pedaços de concreto foram afirmação de histórias da grande coragem.

Meu caminhar cotidiano passado, que compõe esboço de esgar acanhado diante da vida, são ruas íngremes e abruptas, descidas, repetições e esquecimento, salgueiro ancião a carpir, as lágrimas petrificadas, outra árvore a morada de morcegos, portões enferrujados, baús sufocantes, ideias lúgubres, medo do suplício, quintal ao fundo onde se represou a água verde da chuva temperamental, menina furtiva e mãe, ônibus empanturrado de gente rumo ao campo, até a boca da grande fila, para a oferenda da prenda de maçãs frescas e brinquedos.

Edifício isolado ao canto da casa, em seu contorno abraçada escada de ferro espiral, os pés fincados no topo, de repente se despontava enquanto inesperado mirante dos bairros sobrepostos, mas tudo era noite e sono. Lá subiam surradas histórias de demônios, de brigas violentas, e se ainda não se encorpavam episódios da boa boêmia ou dos êxitos junto às mulheres, havia já os jogos da posse. Para fingir cegueira não é preciso, nem sequer conveniente, fechar os olhos. Relatos do terrível, fumegar de crimes, crueldades, injúrias, não mais espantavam, assim como, por outro lado, não trazia novidade o entusiasmo do que promete felicidade e é faustoso. Manchada a palavra, crendices inquietas e desajeitadas esculpiram torvelinho malsão e maldito. 

Aqui a chuva do verão infante volve a abraçar o ar pesado, escorrem bolhas sobre o asfalto, a televisão transmite coisas repetidas, nos recantos as festas se esvaem, tudo parece estar de férias em algum lugar distante, onde o céu se demora pálido e suave. Não se sabe acerca da maquinação da vida a vir, e o passado… Electra! Estourou a tragédia, você pôs na palma das mãos toda a dor, a dor que faz estremecer a espinha de deuses, e em sudário tingido de lendas rubras se metamorfoseou a sangue pássaro a ulular a canção de tinos e lamento!

O rio de São Lourenço

14/12/2024

A água tépida do rio cobre em acalento os pelos do braço até então arrepiados ao passar do vento fresco, e a sensação de tato da vida se forma de todos os sentidos, o folegar que enche plenamente o peito também refrigera a cabeça, o transcorrer do rio concorda com o que se manifesta dentro, desembaraçado. O luzir áureo do céu amplo e a suavidade de pés a pisar sobre pó e areia úmida são o bastante. Palavras rumam no ar infinito feito a água, por não haver parede, abóbada, para sua reverberação, no mesmo instante de aparição desaparecem. Não há centro, mote, a percepção concentrada transborda enquanto dádiva prodigiosa e imprevista, a ausência de discursos vinha porque se era, e tão só. 

No fundo, eu não estava lá, minha vida pode vir a ser, por um lapso, por causa de sua vida, não encontrava em mim lume de força, energia, mas, porque você a tinha, podia eu sentir minhas veias a vacilar. Nunca me senti à vontade para sorrir de verdade, sem sombra, ver motivo e propósito para tal, e a sua risada foi toda a alegria da vida, a sua conversação inútil e iletrada foi a expressão que nenhum tratado pudera alcançar, a sua tristeza toca a raiz de um sofrimento genuíno, destituído de negação e dúvida, porque também para a dor é preciso saber ser, a sua alma foi sempre a manifestação de infância, infância perdida, sendo que nada se ganha.  

E rememoro. Sei que busco inutilmente contornar as margens do cansaço, as margens do horror, da vergonha, mergulhar nessas águas de apagamento e morte, para então escapar, esvair, em renúncia e alheamento. Sei que há nessa parolagem do desassossego, nessa literatura, há nisso tudo a visão rutilante daquele mesmo estar desembaraçado, naquelas passagens de tempo douradas, a existência largada justamente por se se ter sentido. 

Perto do rio, você apareceu para a vida, diante do temor seu proceder não foi o de se afundar por vias subterrâneas. Porque da vida criou um berço de fábula: subia no topo das árvores, de lá olhava o amotinamento de touros brutos, o estouro de reproches, até que aquela truculência acabava por se acabar, ensimesmada, estando você no alto.

Vale

07/12/2024

Arrumar as gavetas, trocar de posição o sofá, reordenar a mesa. O piso a luzir. Os panos sobrepostos, o pó na flanela. E os tapetes, as cortinas, as toalhas e lençóis meticulosamente asseados. E assim, sentir, ver o lugar outro, mas sobretudo, pelo ímpeto da fuga, ver outro lugar qualquer, fincar os pés em chão impossível.  

O itinerário não tinha propósito, ponta, funcionalidade, mero apito de metal oco e mudo a cheirar gás. A vigília irreal transcorre com o torpor do sono, o céu pálido dum marrom agourento recorta a borda da rua larga. 

O meio entre chegada e partida se susta tenaz e enganosamente paragem, porque, enquanto se ergue, cêntrico, rochedo perene, pelo canto — quanto nos foge! — se esvai na morte estigial de tudo, de tudo a correr, escapar… 

Pela intuição do que se vê especial e singular, se deseja e sente a amplitude da vida, a grande aventura. Porventura se sorva a grandeza que é viver, quando a força primordial de tudo não oprimisse, mas alçasse o corpo, e os pés pisassem terrenos impossíveis. E assim, se prossiga o caminhar. No vale escorrem lágrimas e sangue, sob a indiferença e abandono daquela mesma força primordial. Travado o passo no lodo, animal ferido se inclina a usurpar a chegada, premer o meio, estiolar o tempo, espicaçar a sua vida à revolta, a sordidez encenada no jogo humano sobre o vale ser a lágrima de tudo. 

Acorda o dia. Se desdobra, dissimulação de palco, artimanha de carnaval, entusiasmo de conquista e diplomacia, tecelagem da escala de despeito e preferência, atração e ojeriza, se desdobra nos quintais e escadas, nos flancos das grandes solenidades ou dos mesquinhos conchavos, nas reuniões espirituosas e etílicas, se desdobra a manifesta e afirmativa vontade.

Agora a vida se arma em itinerários de logística funcional, de ponta a ponta, no trem se atravessa cidades, se esfumaçam sinuosos campos prenhes de movimento e de repouso.  

Que seja: em lugar qualquer, cerro os olhos, deito por sobre o tapete, afundo no tecido que, afinal, é chão. Em meio a estremecimentos intervalares, a angústia estoura, vulcânica, nas dobras do céu perdido.

Obra inacabada que pasma, treme a espinha, pelo que é aflição do suplício possível, portanto dor pressuposta incomensurável.

Jazer no leito me é penoso e perdura demasiadamente. Caminho pela calçada da grande avenida. O trem corta o ar. As árvores se curvam sob o vento malsão, suas sombras erradias antecipam o cair da noite. 

Timidez

24/11/2024

Tenho medo daquela mulher. Faço de tudo para não estar em seu campo de visão, quando existo, alheio, no seu caminhar ritmado.

Bem sei que, com seu vigor, força e inteligência, pode demover poderosos de tramas malignas, não se submetendo jamais à oficina grotesca dos fatos, e que em sua ação, de ponta a ponta, se impregna uma energia de luta e bravura. E eis que há curta pausa do labor, o intervalo, e de repente me posto diante dela feito um naco de sombra vacilante ao passar de comboio — que segue, segue. 

Bem poderia ela escancarar todas as minhas falhas e pequenezas, projetadas constrangidas à visão rutilante de suas virtudes, e seu desembaraço e vivência constratarem com meu travamento e inexperiência. Na prática, contudo, é como se sua piedade se limitasse a relevar o patético de um sorriso pardo, se limitasse a não fazer notar o sabor da insipidez, gentileza sem gume em meio ao espicaçamento antecipado em delírio. De todo jeito, seja na irreal visão malsã, seja no cotidiano concreto, já de pressuposto carrego lamentações de outrora, estremeço. 

Apitos, fumaça, poluição no ar, o transtorno ruidoso de caminhos múltiplos, e então se me encorpam reminiscências de episódios simbólicos, faíscam enquanto dor do que foi perdido. A chuva cinzenta, o quintal de abrigo transitório, a casa já a ecoar palavras de família, embates banais, e lufadas ameaçadoras no espaço intercalam com a esperança puída de estio. O quintal era uma proteção a exprimir despedida — como pode ser o que abriga adeus? Lá o mau tempo parecia não ter trégua. Até que tem fim, e as palavras seguem a ecoar nas paredes do lar que me é alheio. O que dizem? O olhar recai por sobre o amontoado de coisas pelos cantos do quintal, das árvores dispersas ainda se faz chuva, na cabeça estala uma febre latente, no coração o peso de estremecimentos desconhecidos. 

Se ela afirmasse, não me despertaria da negação, se ela acreditasse, não me livraria da dúvida.

Cor

26/10/2024

Gosto de dicionários. A princípio pelo gosto da palavra em si, isolada, depois pelo hábito da literatura esconjurado em minha vida. 

Meu primeiro dicionário grande foi um Houaiss, quando logo percebi que a referência da linguagem não estava toda ali. Havia presumido que um grande dicionário encerrava o universo possível da expressão, conformando, até, nomes de heróis do mundo antigo, deuses, lendas, ritos, lugares, coisas de enciclopédia afinal. Pois bem. Como esperar tudo isso de dicionários? 

Ainda assim, ainda gosto e preciso de dicionários.

Antes tinha o costume de anotar palavras diferentes que me capturassem a atenção, de modo que pudessem ser incorporadas na minha escrita eventual, é verdade, mas no fundo já pressentia que era algo inútil, fechado a si, poça no quintal, lâmpada azul de berço da infância perdida.

Também me entretinha perceber como determinado escritor deteve, durante recorte temporal de sua escrita, predileção por uma palavra ou outra, e então em certos trechos sobrepostos se repetem “defronte”, “caceteação”, “circunlóquio”, “ramerrão”, “desconchavo”, “prosaico”, “tiririca”, “requinte”, “esbater”, “fruste”, “senão” etc. Mesmo que inseridas em contexto sério, tirava disso uma ligeira diversão.

Preciso de dicionários pela necessidade de se atenuar e dissimular a inevitável ferida da ambiguidade, da imprecisão e da impotência do dizer. Objetiva que seja a fixação dos significados, atenta que seja a recepção, concentrada, sinto que há demasiado desentendido, brecha, vácuo do não dito, nas banalidades mesmo das conversas e desencontros da vida. Na escrita, pelo menos, melhor se pode buscar o definir preciso e justo. Mesmo aqui se fracassa.

E estico o amor cultivado pelo engenho da palavra, solta ou em arranjo, até seu limite deitado em fumaça e confusão, até a dor das ruínas da expressividade, e entre o pó que fica tudo é malícia, vaidade e fantasia.

Bagatela

11/10/2024

Os movimentos e desfechos da vida banal são em mim assomo desajeitado, derrubar de louças, esbarrões, cuja projeção interna faz de bagatelas uma mágoa submarina. E no caminho, o devaneio.  

A bagatela é revolvida, retorcida, sua face é repisada com variações mínimas, em seu seio entrevisto imprecisamente, nascedouro falso de desassossego. Algo tão comum, a esquecer, é para mim assombro pulsante de ideia fixa que se insinua em voltas e traumas nos contornos de pesadelo.

E então é como se dentro de mim houvesse uma força criativa autônoma sádica a projetar malfadados de coisas pequenas em cores sempre novas, cores exuberantes ou pálidas, histórias a um só tempo há muito decoradas e sempre com novas palavras, e ao adentrar estuários intervalares do consolo tenho as raízes largadas a céu aberto de um sofrimento inútil, radicado que é, justamente, numa bagatela. Uma dor puída de nada que, de tanto revirar, compõe vazio inexpressivo da espinha do ser, compõe obra inacabada cujo meio não para de dar vida a sobressaltos supostos e ignorados. 

Não sei agir a partir e para esta vida corriqueira, e o que esta vida tem de inevitável — porque meus pés não prescindem do chão, nem meus olhos do que está logo à frente — tem de meu desprezo. A força criativa tem mãos para o devaneio, nas frinchas das bagatelas são tracejadas, com a facilidade de sonho, resoluções tão exitosas, renúncias tão assertivas e acabadas, a cobrir o banal baldado, cheio do torvelinho artificioso do sofrimento, da culpa e da vergonha, de nobreza pressuposta. O desprezo do que se estranha do alheamento é espaço a toda sorte de afetuosa vontade, da nulidade se evoca o amor de um sentimento cheio, se esvaindo afinal, corpo daquela mesma nulidade.