Sob influência

 25/04/2020

1.

Dobro a ruazinha do centro, tudo como sempre ao redor, os altos edifícios acentuam a opacidade de um dia cinza, há muita movimentação; mas, tal é a extravagância, estas conhecidas paredes são agora novidades de um pesadelo ruim: avoluma-se nelas uma densa sombra a seguir-me, ou melhor: um imperativo, um capricho erigido por mim mesmo, todavia posso ir à raiz da coisa, sabendo, claro, que não será fácil o corte.

Às frases prontas e sempre repisadas por aí, em sua maioria, pode-se sistematicamente fazer ouvidos moucos, pois neste caso seu valor não reside na frequência em que são mobilizadas, pois no mundo prosaico podem ser anuladas instantaneamente; assim ocorre, por exemplo, com a ideia de “positividade”: o universo ajudaria o indivíduo que pensa em coisas boas; embora muitos preguem isso, aconselhem-no, o cotidiano não é propício à  absoluta realização desta exortação, afinal o contexto no qual se insere injeta cada vez mais, nos sujeitos, um senso de urgência e, com isso, maus pensamentos;  mas haveria, de todo modo, algo de condenável na positividade? Sabendo-se de sua não cristalização no real, a positividade se torna quase que um ideal, com resquícios de culpa por seu distanciamento, uma lembrança de que a carranca não ajuda em nada, de que há pontos de vistas, em suma: há uma margem de ação para o sujeito, este pode acreditar ou não na ideia, pode executá-la ou não, naturalizar ou não seu mau humor diante do destino, pois a frase possibilita certa liberdade de rebeldia: pode ser repetida infinitamente, não havendo por causa disso enquadramento do campo de atuação do sujeito.

E se a exortação for mais arbitrária, tendo como pressuposto já um encaminhamento estrito do indivíduo? Em alguns casos, a frase pronta se fixa com pressuposto aparentemente inquestionável, seus efeitos práticos afluem, por isso, automaticamente. Um exemplo: a exortação da assertiva “todo mundo deveria fazer terapia”. Talvez prevendo a força do impacto de tal senso comum, geralmente o exprimem acrescido da ressalva de que terapia não é direcionada ao sujeito apenas em termos de “doença” e “saúde” — afinal todos deveriam fazer terapia, até os saudáveis.

Nesse campo reduzido de possibilidades (de todos não sobra ninguém), surge certo imperativo, um capricho, uma densa sombra que se avoluma nas paredes e que, embora erigida também por mão humana, veste a face da técnica, está deveras consolidada no senso comum e colada em várias ramificações do conhecimento, com todo um ordenamento de mecanismos de encaminhamento de pessoas, sendo por isso um pesadelo cuja raiz não parece passível de ser arrancada.

2.

A preocupação, o desespero e os temores são verdadeiras entidades que condicionam e são condicionadas pela vida social – apreendidas por meio de um caminhar apressado de um transeunte, de um fraco suspiro de um estranho. Por isso, embora atomizadas, sob a pele de um nervosismo solitário de cada um, obviamente não são fatores isolados de uma vida em coletivo, de um contexto de inextricáveis laços. Aqui reside, em contexto urbano, a manifestação humana através de componentes tácitos. Manifestação escondida mas com enorme peso para o devir do sujeito. Quadro este já fincado por Fernando Pessoa em uma das estrofes de Ode triunfal:

“Ó tramways, funiculares, metropolitanos,

Roçai-vos por mim até ao espasmo!

Hilla! Hilla! Hilla-hô!

Dai-me gargalhadas em plena cara,

Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,

Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes nas ruas,

Rio multicolor anônimo e onde eu não me posso banhar como quereria!

Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!

Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,

As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,

Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto

E os gestos que faz quando ninguém o pode ver!

Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,

Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome

Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos

Em crispações absurdas em pleno meio das turbas

Nas ruas cheias de encontrões!”.

Sem dúvida, nesses corredores sinuosos da vida nem sempre percorre seiva de valor negativo, no conto A Dama do cachorrinho, de Tchekhov, emerge a ideia de que as convenções sociais e a vida pública não abarcam o fundamental para cada um: no mistério é que se tem a genuína manifestação de vida do sujeito.

De todo modo, o imperativo das inquietações, movimentando-se em corredores sinuosos e quase sempre escondidos, pode volver do desassossego interno à concretização do medo (ou seja, do temor à sua concretização), assim se sucumbem pessoas, sem alardes, nas veias subterrâneas da vida urbana, como ocorre na jornada expressionista de mãe e criança em O desaparecido ou Amerika, romance de Kafka: no mau tempo, à noite, privadas materialmente, erram sozinhas pela cidade, a aflição não age como anunciadora de uma queda iminente, a situação extrema já é vivida de fato. E assim, se o soçobrar concreto da humanidade se dissipa nas veias urbanas, de forma tácita, não poderia ser diferente com os temores que o antecedem, geralmente ainda mais implícitos que o da efetiva queda, porque é inconveniente exprimir inquietações fora do seio familiar; acontece que este seio familiar pode ser, ele mesmo, agravo ou agente da angústia interna. E não é desejável, além disso, cacetear os bons amigos, que também têm seus problemas. A quem, então, confiar a angústia?

O efeito de problemas internos se faz sentir patente e digno de intervenção externa quando, à maneira de um espetáculo, o equilíbrio geral é ameaçado por causa de manifestações estranhas a tal espetáculo de uma das partes. E isso mesmo na roda imóvel de uma ceia, lembremos de Uma mulher sob influência, filme de Cassavetes: os convidados à mesa mudam, ora família, ora colegas, mas a lógica é a mesma: o desconchavo, a loucura, no palco, em contraste com o normal, nas cadeiras do teatro, e assim temos o espetáculo da loucura – a ela todos da mesa direcionam o olhar, constroem o consenso de necessidade de intervenção, o público manipulará o destino do artista. Claro: até chegar a situações mais extremas, há sutilezas operando em igual sentido, o de encaminhar e intervir por meio da palavra, não necessariamente força – e de todo modo se manipula a roda do tempo.

Há, então, o caminho pragmático, não é qualquer intervenção. A mão do especialista deve consertar os que momentaneamente não estão na roda. A exortação da assertiva “todos deveriam fazer terapia” é de que quaisquer desconchavos internos, assim como um dente defeituoso, devem ser tratados pelas mãos de um especialista: ajuda impessoal e que, todavia, focaliza no subjetivo. No caso, o cerne é o autoconhecimento, especialmente porque existe o subconsciente, para supressão de travas bem fincadas desde o passado e de inadequações com o contexto. Esse tratamento nasce da dinâmica mas é encaminhado para um terreno externo, neutro, já consolidado nos meandros científicos.

3.

Ouvi certa história que me soou, confesso, anedótica. Estava jantando sozinho no restaurante universitário – maior laboratório de reverberação do senso comum da classe esclarecida – e certo rapaz falava da experiência de seu pai na terapia:  este, ao sair de lá, passou, além de descobrir coisas de si que ele mesmo não sabia – passou também a ter lembranças novas: forjou-se memória à luz da percepção presente, auxiliada pela mão profissional, e ninharias já passadas mas inéditas ou novas em importância seriam as travas ainda presentes, ainda condicionantes do campo de atuação do sujeito. O desconhecido profissional e, em consequência disto, agente impessoal seria um verdadeiro oráculo que olha para o passado de seu paciente, e sua profecia dissipa a fumaça interior do outro.

Quem negaria que este desconhecido de fato possa ajudar seus pacientes a conhecerem a si próprios e que seja importante e benéfico para muita gente?

Por outro lado, não é razoável restringir o horizonte de reflexão e de atuação do indivíduo, bem como o de cuidado do humano, do outro. Como a vida não é totalmente compreensível, nítida e manejável pela técnica, o perscrutar a humanidade não deve ser exclusivamente por meio de mãos profissionais, tal redução significa decréscimo das possibilidades de percepção a respeito de componentes da natureza humana, à qual as ramificações do conhecimento são inerentemente externas e estranhas, justamente porque o pulular instantâneo e singular das expressões do ser encontra todo um ordenamento técnico pré-arranjado, tal arquitetura encaminha automaticamente o engenho humano em nome de preceitos anteriores a ele; de fato, ocorre uma domesticação humana, é como se, com cansaço, as pilhas de manuais científicos falassem “Ih, já conheço esta história!”. Essa visão da natureza humana encaixável, com encaminhamentos pré-estabelecidos, ceifa a liberdade da singularidade – um público que já proferiu o veredito antes mesmo de o artista pisar no palco — e justamente por isso tal psicologização tende a reduzir não só outros aparatos analíticos, como também modelos e concepções existenciais e estéticas: uma sociedade vazia em termos filosóficos e religioso, embora, por trás de tal imperativo da terapia, haja inequivocamente inspirações religiosas e uma filosofia própria. Aqui a perspectiva psicológica é um verdadeiro sol que ofusca alternativas calcadas em outras bases epistemológicas ou existenciais.

Além disso, o exercício de aconselhar terapia, mirando um alvo, isto é, de intervir simbolicamente, com boa intenção, pode servir como atribuição unilateral, ainda mais porque parâmetros do contexto não abarcam componentes não assimilados dentro de seus limites: até se falava da loucura de Beethoven, eis a sinalização de que há um espaço reduzido de entendimento do outro e de sua expressão, exclusivamente porque tal expressão não tem correspondente no repertório de parâmetros consolidados do agente perpetrador da atribuição, e esse desvio, portanto, tem de ser encaminhado, afinal, nesse problema de  comunicação e compreensão do outro, nunca se questionam as bases do julgamento ou as limitações de entendimento do agente normal. O humano delega aos conhecimentos especializados o trato do outro e, ao mesmo tempo, arbitrária e perfeitamente, sabe mapear quem precisa ser encaminhado.

E assim, como em um ato administrativo, burocrático, a questão humana sempre é encaminhada ao setor especializado.

4.

A lógica do imperativo da psicologização é tão avassaladora que, além de ofuscar, contamina outros terrenos humanistas. Em relação à satisfação individual e à supressão de travas do passado, a arte, por exemplo, não poderia causar certo refrigério interior, atuar no autoconhecimento e, nesse sentido, ser uma terapia? Não negaria que, por um lado, também possa ocorrer isso e, por outro lado, justamente o oposto.

Por seu turno, o artifício da uniformidade aponta para a exclusividade, já que o imperativo da técnica exclui outras alternativas, pois o mundo, nesse caso, é prenhe de fatos, estes são inequívocos – caso a literatura, se terapia, tivesse uniforme e exclusivamente efeito benéfico, eis que teríamos a referida contaminação: há a obra fixa, letras escritas em pedra, e há a experiência de leitura, a pluralidade de possibilidades de percepção dos significados da obra, esta experiência obviamente impactada pelo contexto social, mas de forma alguma este segundo fator, as condições materiais e sociais de leitura, deve desvirtuar o cerne dos elementos já fincados da obra; esta não pré-estabelece diretrizes encaixáveis de manipulação de seu público, seu efeito em gerações e em indivíduos é de responsabilidade destes, e a obra pode não preencher vácuos; num horizonte mais amplo, pode desassossegar, piorar — não necessariamente esclarece um suposto subconsciente, mas, sim, exprime um abismo ainda mais pantanoso e incerto. E sobretudo não se calca em parâmetros de saúde em contraposição ao malsão, afinal a doença é um ativo literário… A obra está erigida, com seus elementos constitutivos próprios, o criador já cumpriu sua responsabilidade, o que vão fazer de sua obra não está em seu domínio. Acontece que as duas facetas (obra-leitura) atuam no efeito, sendo que a primeira delas condiciona e põe limites à segunda, ou seja, não é possível um efeito genérico e uniforme. Nessa lógica arte-terapia, há a mesma presunção de abarcar-se todos num mesmo campo reduzido: a arte, no geral, aqui, serve como terapia e, por isso, no geral (afinal são todos), o seu público sai melhor depois dela. Ora, seria menos ingênuo se abraçássemos todos a ideia de positividade!