Seis momentos musicais

 17/12/2019

E a beleza é como a piedade: não se pode vê-la enquanto se corre.

– Herman Melville 


Nas calçadas contíguas à Sala São Paulo, sobre as quais transita gente despedaçada, verdadeiras sombras, repercute o som do violoncelo de um músico que, em algum lugar no interior do prédio, executa as suítes de Bach. A dura realidade coexiste com o sublime, e as engrenagens da distinção social tomam o sublime para si.  

Para muitos, o gosto por música clássica se equivale à paixão por sorver vinho refinado, pois as sutilezas, minúcias e barreiras sociais relacionadas a esta bebida também estariam presentes na música clássica. Quem não está dentro desse universo de minúcias e não preenche vários de seus requisitos sociais só vê, nele, um grande espaço uniforme, homogêneo e, mesmo, afetado; para quem não é parte, resta o fastio. Para outros, os desdobramentos instrumentais são ideais para as horas de estudo, afinal otimizam, pensam, a concentração — em suma, um pano de fundo, secundário. 

Poderia a música clássica ser mero acompanhamento secundário? Ou ser um universo hermenêutico, difícil, afeito somente a quem, condicionado socialmente, foi treinado para aparentar gostar de erudição e, em consequência, diferenciar-se socialmente de muitos? 

No desenvolvimento da música clássica, há o momento no qual a consolidação de sua linguagem própria atinge paragens inefáveis, afinal “é a integração de temas e a descoberta de possibilidades narrativas e dramáticas da tonalidade que fazem da música de fins do século XVIII uma arte do pensamento — uma arte das ideias em estado gestual, sem a definição e limitação da palavra”. Porém, por mais elevada, difícil, inominável, suja, qualquer criação humana não é reservada aos escolhidos, e é tolice a correspondência entre valor social de grupo, de um lado, e tipo de criação de outro, pois a força criativa erigida pelo gênio geralmente é monumento em pedra não derrubado pelas ondas irremediáveis do destino histórico. A obra prima é a face humana em seu mais alto estado. Se não fosse assim, o momento de gênio seria espelho do ordinário, e por não sê-lo não faz correspondência automática com as ordinárias diferenciações sociais calcadas em “refinamento do gosto”…

Em outras palavras, a erudição ou gosto refinado restrito a poucos, por si só, é apenas moeda social, flutuante, descolada da linguagem criativa. A aquilatação de valor das obras prende-se ao que se julga fundamental em termos de expressividade, é um tensionamento entre aspiração do ser e criações do gênio humano, quando se separa, de tudo o que há em termos de possibilidades expressivas, o que é essencial para quem está diante das obras, eliminando  ou diminuindo automatismos irrefletidos. 

Que, então, fazer com as grandes obras, excluindo-se os disparates de, unilateralmente, pregar sua massificação ou, pelo contrário, reservá-las aos escolhidos?

Idealmente, o arranjo social não poderia ser um óbice à emancipação expressiva do indivíduo, que tem razão de ser a partir das esferas da linguagem. De qualquer modo, tal busca possui suportes e intermediações. A consolidação de espírito crítico de uma geração é maneira pela qual as obras recebem tratamento sério e direcionamentos, atenuando-se assim o sentimento difuso e relativista. As obras, com a crítica, são esmiuçadas, seu alcance passa a ser nomeável por meio de aproximações, e as circunstâncias históricas, elucidadas. 

A grandeza e a altura da expressividade humana fazem parte da realidade quase sempre cruel, de violência e hostilidade entre as pessoas. Em outras palavras, a expressividade atua quase como um deus diante do banal. O deus é prenhe em beatitude e, ao mesmo tempo, porém, está vinculado ao mundo… Entrar em contato com certas obras é fazer parte, por instantes, de um momento no qual o gênio humano atingiu o grau mais elevado da expressão. Por sugestão, eleva-se o espírito. A estupidez dos fatos não se apaga com isso, e, de certa forma, vemos o limite material da arte. 

Talvez à música clássica não creditem tal poder. Talvez todo tipo de música cause isso. No caso da música clássica, é fundamental derrubar esta enorme neblina que esconde algo grande em termos de expressividade humana.  

Claro, há aspectos materiais que dificultam esta ampliação de horizonte da expressividade. A predominância do ouvir sobre o escutar, para usar a diferenciação de George Steiner, ganha ainda mais força com o aspecto sempre fragmentado de música por streaming; com o imperativo da pressa e da velocidade; com a atenção difusa como idiossincrasia geral. O escutar exige uma postura mais ativa, quase que de cumplicidade com o criador — uma conversa com um mestre.

Não bastasse isso, a geração meme é extremamente pobre em termos de reverência ante o que é grande. Fora da seriedade do trabalho e educação especializada, ela faz de tudo uma piada, figura, montagem. Estamos com o espírito sempre infestado por resíduos da jocosidade e da atenção difusa do entretenimento. A música passa, então, a ser secundária. A expressividade, em seu estado de transe de fulguração criadora, encontra a displicência. 

Por outro lado, é tolice encarar música como otimizadora de concentração para estudo, como pano de fundo, secundário. O escutar, na verdade, é que exige concentração; concentração em relação à música. Cada segundo dos Noturnos de Chopin, música sensível, delicada, introspectiva, é fundamental, ou nos distanciamos de sua linguagem e a expressividade fica, pois, no segundo plano, e temos fragmentos; já que Oswald de Andrade se referiu aos “pingos de Chopin”, é necessário perceber o gotejar… A oitava sinfonia de Bruckner possui 88 minutos. De qualquer forma, nestes parâmetros, são um desafio o ter tempo em meio a vida corrida para ouvi-la, o desalienar-se desta vida, para manter a concentração sobre os desdobramentos da música, e, por fim, o entender alguma coisa. Um sacrifício?  Não se acharmos que teremos experiência imersiva de grande fé e de grandeza no fragmento, quando estamos sempre ocupados com bobagens, com o supérfluo. Obra como esta sinfonia surge em estado muito singular e único: o domínio técnico e maturidade expressiva, as circunstâncias da vida do autor e da sua percepção sensitiva, o seu contexto artístico e de desenvolvimento da linguagem, o contexto social, político etc. – este emaranhado inextricável do qual o rasgo de gênio emergiu é único e só a eternidade o repetiria: e assim, a obra é mais singular ainda, é uma miragem. E a mente criadora gera tal sinfonia, em contraste com o banal e o imperativo dos fatos. Bem. Exige-se, diante dela, um pouco de liturgia, reverência. Um esforço, na verdade, de desalienação do cotidiano. 

É completamente natural afirmar que a música é fundamental à vida humana. Ninguém morre por falta de música, a sobrevivência concreta, física ou química não depende dela. O importante, porém, é que não somos bichos reduzidos a instintos e ao concreto, à especialização e à técnica, há o amor e a morte, o desconhecido, há a gravidade de ser —  há tudo o que se sobressai do automatismo da rotina econômica e do entretenimento. Fechando sua primeira Elegia de Duíno, pergunta Rilke: “(…) inutilmente foi que outrora, a primeira / música para lamentar Linos violentou a rigidez da / matéria inerte? No espaço que ele abandonava, jovem, / quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu / em vibrações – que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo”.