Serioso

 07/01/2022

Beethoven não foi o autor dos famosos epítetos de algumas de suas obras, como Appassionata, A caça, A tempestade, Ao luar etc. Ele fez questão de definir poucos e outros nomes. É o caso de Quarteto serioso, colado ao quarteto de cordas op. 95 e que sugere fielmente o caráter e tom da obra, um desenrolar opresso e angustiado.

Kierkegaard demonstra como o ser é uma tarefa grave e difícil. Na verdade, ser é como que uma busca, uma transcendência de nossa condição comum, tão de desamparo; essa condição sorve o infinito, próxima, contudo, do abismo. E assim, o desespero é universal, presente mesmo em quem não o reconhece; está na base – transpô-lo e superá-lo são um ato de fé.

Desse desamparo podem emergir expressividade e também humor, ou ainda toda sorte de distração. Ou tudo seria distração, especulação do espírito, o qual escapa do automatismo e constrói a vida nos moldes de seu temperamento e desejo, e a referência não é Deus.

Distração ou não: expressividade porque, por exemplo, o Quarteto serioso é angustiante e ao mesmo tempo desconcertantemente belo. Assim como a sinfonia Inacabada de Schubert. Ora, aquela torrente expressiva, que mais remete à representação dum estado de tormento, é um colossal feito do engenho humano, um mero animal não o criaria, ou melhor: um animal sequer o poderia; o procedimento de nos reduzir à biologia não passa de vulgaridade de pensadores amantes do esclarecimento, e nada é mais dissimulado e hipócrita do que o manto do progresso e esclarecimento, do que a civilização polida a repelir o selvagem, assim arbitrariamente definido, sendo que, no seio de tal civilização, reside a infâmia.

Já o humor pode assumir parte importante do proceder na vida, tornando-a assim passível de ter um fecho bem resolvido. Lembro-me então de algumas obras carregadas que, taciturnas, quando não resolvidas conscientemente no bom humor, pelo menos têm chistes e ironias por adornos. Em certa peça de Gógol cujo tema é a reação do público a uma outra peça, o autor desta última chega a defender que o humor é seu personagem principal.

Mas tudo isso pode ter a força de ilusão. E eis a alarmante seriedade novamente diante do nada da vida, implacável em seu transcorrer. Não querer saber o que não se pode saber parece ser algo sábio. Contudo, não seria isto uma forma de deixar em segundo plano o construto de nosso ser?

O caminho até a fé é uma forma de dissipar tal nível de dúvida e trevas a que estamos submetidos; a gravidade e a amplitude do desafio de viver continuam, e sentimos a graça.

Deus. Como não é razoável submetê-lo à nossa lógica de tempo e desejo, tampouco o presumiria como essência e substância da natureza, das árvores, aves e orvalho. Mas, se não o presumo desta forma é porque ela se mostra deveras exigente, requer um olhar especial, como que treinado, tal qual prega Alberto Caeiro — e estou mais para Álvaro de Campos!

É uma condição intrincada a do ser humano. Talvez os grandes escritos ampliem nosso horizonte ao despertar um sentimento inativo porém essencial. Seja como for, a seriedade não é sinônimo de caceteação ou tédio. Afundada no desespero, pode ser divertida… E também bela: voltemos, então, ao quarteto op. 95.