Castelos no ar

 17/01/2022

A vida é um dom. Um ato de dádiva, contudo, incompleto, velado, como um presente partido ao meio e cuja face perdida foi alçada a um lugar vago ou obstinadamente assimilado, e os nossos pés, fincados no chão, materialmente não podem alcançá-lo. É necessário construir, dar um sentido ao vazio, ou ultrapassar essa distância advinda da origem, ascendendo até a criação.

Alguns escritos de Shakespeare, especialmente a tragédia de Coriolano, e Gógol, especialmente Tarás Bulba, sinalizam a forma beligerante de dar sentido à vida. E o heroísmo épico e seu estandarte da glória, curtos que sejam, têm mais valor do que uma vida longa pacífica. Nietzsche descreve várias formas usadas pelo homem para lidar com seu sofrimento, sintetizadas no ideal ascético, como a religião, a ciência que reduz o homem à biologia e o trabalho (o “cuide de seu jardim” de Voltaire), formas estas de privação, de não à vida, “o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer”.

Para Kierkegaard, “o homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é, em suma, uma síntese”. O desespero é universal por tal síntese, a princípio, ser tolhida de termo de referência fundamental à sua constituição. O ser nunca é dado, embora a vida seja dádiva. Não é razoável, pois, enxergar a fé, o oposto do desespero, como mero ideal ascético. Porque só algo para além do humano — algo que, diante de nossa estrita racionalidade científica boba, dê margem ao escândalo — verdadeiramente nos libertaria de nosso desamparo de partida. E assim, temos a seriedade da luta pelo ser, uma causa perdida caso não haja fé. Temos e não temos a vida, e nesse colossal abismo ruidoso que rodeia a conquista do ser, o desespero pode nos afogar.

E então a questão passa a ser se a vida espiritual terá ou não Deus como referência máxima e absoluta. De novo segundo Kierkegaard, sem Deus como referência, tudo pende à especulação, desde a da pessoa desesperada sem o saber, e espontaneamente apenas vive (o marçano de Fernando Pessoa), até a especulação do sonhador e singular. A múltipla forma de preencher o vazio indica a variedade de tipos de desespero. O desespero pode chegar ao ponto de amaldiçoar a existência, como se fosse prova inapelável contra esta. Aquele sujeito que, na Nova Zelândia, perpetrou um terrível massacre sobre local sagrado das vítimas acaba por manchar a vida em si, para além de toda a sinalização de crueldade, atrocidade. Daí que este ato sórdido e ignóbil malfada insofismavelmente a bondade e graça da existência do ser? Talvez a mera mente humana não consiga, atônita, derrubar tal prova contra a existência, contra Deus, e talvez a fé seja, novamente, o único socorro.

Como não bastasse a condição humana, há a sociedade, o turbilhão ao mesmo tempo frenético, fulminante e repetitivo do cotidiano. Uma existência material já muito hostil e difícil. Em termos do ser, uma vã lide. Mas como atravessá-la? Na poesia e na força do pensamento, é sublime o deslocar-se da vida prosaica da sociedade e trabalho. Há algo de nobre. Temos aquele belo caminhar das Elegias de Duíno, de Rilke, rumo à solidão, longe do incessante apregoar do mercado, do imediatismo material, da algazarra, os quais são, no caso, uma espécie de densa neblina a distrair da conquista do ser.

Seja como for, em termos práticos, claro, isolar-se é isolar-se. Rumo a paragens divinas, o espírito habita frágil pele a ferir-se em paredes e espinhos. Hannah Arendt explorou essa questão e suas consequências no âmbito político. Quem é só não tem poder. E poder mandar é vontade, aparentemente tal qual uma vontade natural e inerente. Na verdade, tal pendor é prescindível, o que, todavia, tem seu preço. Torna-se fraco e singular, pobre e nobre, tal como o descreve a música cantada por Zeca Pagodinho: “Confesso que sou de origem pobre / Mas meu coração é nobre”.  

Se a vida bélica eleva ao brilho da glória, a atravessar o tempo e a memória de várias gerações, por outro lado a solidão é a princípio, e isso de forma deliberada ou à força, infausta aos olhos próprios em relação a outrem ou em relação aos valores sociais, convertidos em piedade e despeito. E o que era o desespero de origem se confunde com as angústias da vida prosaica.

E como não bastassem isso e mais aquilo, há o peso da memória, das escolhas, a perda de sensibilidade e de paciência, o cansaço, as colisões com os demais, toda sorte de rancor, privação, necessidade de amor, ressentimento, azar, ofensa sem perdão, mágoa, arrependimento. Incontornáveis vicissitudes. É curioso, o primeiro livro de João Cabral é uma espécie de processo de petrificação da alma, em meio a ruínas da esperança e ilusões perdidas. O sim à vida extirparia de chofre nossas infames inclinações, maus pensamentos, fraquezas e vícios? A repulsa de Nietzsche ao ressentimento talvez seja um próprio ideal ascético, com o qual falsamente se aceita o homem como é, com pejo das mesquinharias a ele implicadas.

Por mais que se pense que se exige perdidamente da vida, afinal o mundo é a oficina do capeta, que exigimos demais de nós próprios, parece que nunca poderemos nos desprender por inteiro da posição opressa de desespero, ou mesmo do peso da dúvida. Pois a vida passa, e a parca impressão de que se está a perdê-la ganha pouco a pouco corpo. De repente o que era mera impressão, vaga e intuitivamente captada, tem a solidez de ideia fixa e espicaça a cabeça tal qual feras monstruosas de pesadelo. E assim, aquela dádiva da vida, vida esta copiosamente fecunda em sua natureza, com toda a possibilidade de amor e felicidade, todo o vigor, amizade, camaradagem, farra, liberdade (haveria ilusão maior?), prazer, futuro, esperança, êxito, desejo, criação, beleza, e, sobretudo, com toda promessa de beatitude, em vez de atingir sua plenitude, escapa como água de nossas mãos, e se morre, ao desperdiçar tal dádiva, sem morte. E o que seria uma graça volve-se como tormento.

Entra-se então no estado de desassossego e de sonho confessado por Fernando Pessoa: “Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura / Porque não são sonhos”. As preocupações e angústias se largam prostradas no esquecimento erigido pelo sono, porque estar-se desperto é a irreal e absurda miragem. As intrincadas ideias e temores de A Construção, de Kafka, podem incessantemente martelar a mente, e o pensamento atinge uma densidade que apenas oprime. No conto Funes, o memorioso, de Borges — ele que, em seu respectivo prólogo, de forma aparentemente jocosa, diz ser este conto “uma vasta metáfora da insônia” —, o estar sempre atento a tudo tem como exemplo o sujeito que acompanha o desenvolvimento esmiuçado de uma cárie, ou o da umidade de uma parede.

Talvez seja uma forma de distrair-se da fé, da questão da conquista do ser, deixá-la de lado. Talvez, antes, não se tenha tenacidade o bastante para se crer. Porque a síntese é de princípio marcada pela dúvida e desamparo, volve o olhar para o vasto mundo já inclinada para a queda. Embora possa subir, não se crê o suficiente, a luta sem oponente já há muito a feriu, e acaba por admitir-se que ao dom incompleto da vida não se adiciona, comumente, o dom da conquista do que foi perdido, poucos são os conquistadores. Se a conquista de um mero casebre, um teto para repousar e esquecer, em um mundo hostil — se isso já constitui uma dura tarefa, o que pensar da conquista de um presente, o mais decisivo de todos, mutilado?

Resta tão somente a noite — com seu luar, a suave brisa e o murmúrio das folhas, com suas nuvens leitosas e indolentemente móveis, com os gatos esguios e a poeira sobre os telhados: o silêncio humano impera, e todas as inquietações e angústias têm, por um único momento que seja, um justo e consolador descanso, esquecido de si e do acúmulo da vida.