Op. 106

 02/09/2021

Escutar a Hammerklavier se assemelha ao amor descrito em Fedro, sua expressividade evoca, assim, certa reminiscência de uma condição altaneira e divina: há o adágio, calcado que é num sofrimento terreno… e embora possua a solenidade de murmúrio de deus, é dolorosamente humano, com a fragilidade humana do homem que sente de maneira transcendente mas é espreitado pela realidade concreta, tola, inadiável e inevitável — à guisa do questionamento irrequieto de Fausto: o viço inesgotável da fonte da vida defronte ao fenecimento paulatino de cada um. Certo é que não é uma obra abstrata, meramente especulativa ou arrebatadora. O movimento inicial talvez seja o mais enfático e assertivo. Marca e consolida, já de princípio, a dimensão e gravidade da obra, e a certa altura se volve o tema inicial em outra tonalidade de forma a martelar a consciência de que não se pode retornar, resta tão somente o caminho adiante, tomado por escuridão e mistério. Adiante, musicalmente, o scherzo, tão curto e, ao mesmo tempo, tão repassado de sutilezas e, especialmente, ironias. Julian Barnes apontou que a ironia é sobretudo um ato de defesa essencialmente frágil, atrai ambiguidade e entendimento incerto, indica, ademais, um prematuro temperamento aziago. E assim, o scherzo também representa certas passagens agridoces e nostálgicas, dentro de uma tessitura cortante, abrupta e curta. Por fim, a grande fuga. Inicialmente o movimento rumina, depois prorrompe como um estouro a fuga, fausta e abundante reunião de recursos expressivos, tal como um jardim, uma cadeia colossal de montanhas, ou o que for, espaço que comporta um generoso pulular de vida em sua genuína manifestação. O entreato é uma passagem calma, também a ruminar e que, quando retorna, sobrepõe-se a outros temas. Essa fuga é a música em sua expressão plena, inesgotável, e supera o dilema humano o dispensando. Pois a expressão não questiona ou representa, apenas é. Emerge a consciência humana de que não precisamos saber, e isso é uma libertação. Escutar a Hammerklavier é, momentaneamente que seja, ser. Remeter a um estado divino ou primevo de pureza, bem como remeter ao sofrimento acumulado e transcender tal movimento ao forjar e transformar os elementos que constituirão uma nova expressão da vida.