Serioso

13/06/2019

É possível considerar o cinema uma arte duvidosa. A unidade cinema enquanto cultura moderna tem o mesmo peso do que qualquer outro entretenimento.

Relembremos as altas expectativas quando do nascimento da pujança do cinema, descortinadas, depois, em um lamaçal de desilusão, como por exemplo as reflexões e teorias grassadas na época do cinema enquanto arte nova: mesmo Walter Benjamin, que se contrapunha às visões que reputam ao cinema o status de arte superior, também viu nele extraordinários poderes, até mesmo de transformação social. Mas Chaplin era exceção e de forma alguma marcaria as idiossincrasias ulteriores do cinemão. Sempre queremos nas telas a projeção de objetos sobre os quais lançamos ora nossa simpatia, ora nossos medos, sendo o destino dos personagens o que mais importa. Com o seu atual estágio de significado diante de nossa cultura, o cinema é uma causa perdida, o problema do cinema não é ser um “mercado de mentiras/ilusões”, seu problema está em ser exercício de autoengano existencial, e é nesse sentido que Robert Altman riu da tentativa do autor do “cinema de autor” de subverter a lógica. Por outro lado, o que foge à lógica com certeza é um possível vetor de grande expressividade em meio às demais artes. Porém, ainda há limites, e o cinema tem que se conformar com a possibilidade de criar expressividade profunda em pouco tempo; de mais, restam-nos os filmes sem coração de festivais e a nostalgia de filmes de uma época não vividas por nós e, portanto, não apreendidas completamente.

Na esteira do que há de pior neste cinema possível, neste nosso cinema, temos a contemporânea explosão das séries.

Enquanto que, segundo Abujamra, o melhor aluno era o que matava aula para ver um filme do Buñuel e discuti-lo em grupo, os nossos melhores alunos, que não faltam nunca e são aplicadíssimos, se contentam com o que se extrai de prazeroso na arte da lisonja e do elogio das conversas de corredor cujo tema trata de séries assistidas no conforto; nisso, os personagens e o mundo da fama são enaltecidos e, principalmente, faz-se um jogo de morde e assopra acerca do destino dos personagens: em suma, pisar as fronteiras de até onde se pode, com deleite, falar de algo que acontece nos desdobramentos da série sem, ao mesmo tempo, desaguar a curiosidade do interlocutor.

Na falta de essência para discutir, sempre há assimetrias de informação (fulano A viu tantos episódios, Fulano B, tantos outros), e a discussão então é calcada no vácuo. Um estimula o outro a preencher esta ausência não com matéria prima, mas com um “visto”, para que na próxima conversa o arranjo assimétrico seja outro, e assim sempre a discussão é maleável, com buracos e promessas de se preencher a ausência com mais conteúdo irrefletido, o que gerará, por sua vez, elogios e suspiros.

A preocupação de toda série é de se espraiar coerentemente em seus intermináveis capítulos e temporadas, e isso de forma tal que quem a consuma, embora seja um “maratonista”, não se canse nessa maratona, pois sua simpatia e sua curiosidade sempre devem estar passíveis de serem renovadas ao fim de cada episódio, e o que ele ganha é o que perderá ganhando assunto no corredor. Sim, espraiar-se de forma coesa. O que não significa falta de espaço para séries com episódios avulsos e não lineares, afinal a coesão ainda pode está lá, mas tem o limite de ter de funcionar como coesão enquanto manutenção de um determinado perfil de público.

A experimentação artística de uma série tem por parâmetro a reação de mercado do público, e assim o processo de construção de temporadas e episódios obedece a estas reações externas, e portanto o exercício artístico de criação é exposto a flutuações.

Tudo isso é adequado ao típico hábito de quem quer harmonizar o conforto do sofá e hedonismo físico da alimentação com o que se vê em tela, e assim suspirar, achar os atores belos, fazer a apologia da última coisa que viu, persuadir o colega de corredor a entrar nesse ciclo de séries infinito. Dizer que série X faz crítica social e presumirmos que há nisso algo de transformador é o mesmo que forjar em pedra a nossa resignação com o estado de coisa, sinalizando, ao mesmo tempo, em um possível purgatório, o consolo de uma boa justificativa, a de que, no fundo, tínhamos um germe de crítica. Presumimos que a alienação é um fenômeno que sempre está fora, ao lado, nos outros, trocamos dessa forma o círculo de debate e discussão por um corredor efêmero.

É de se esperar que as séries brinquem com o que esperam os nossos melhores alunos, e isso, claro, numa relação comercial. Mas é um manejo de expectativa não tensionado, restrito a dualidades sobre o destino dos personagens: se há surpresa em o personagem A ter o destino B, quando o normal era A ter destino A, é certo que o telespectador teve uma quebra em suas expectativas, mas é uma inflexão aparente: no fundo o destino A ou B tem o mesmo sentido no processo de construção artística, tem a mesma insignificância diante dos demais elementos deste processo — nesse caso, a expressão artística entrega somente o que é palatável em termos de amplitude de sentidos.

Se há sangue, cultura da morte, chacina e estética de videogame concebidos como entretenimento banal, isso não é sinal de que tais elementos não sejam em absoluto o mesmo que culto à infantilidade; certamente há como corolário disso a banalização do humanismo, mas o que se projeta como belicoso é apenas infantil. Até porque a ternura de uma criança diante de uma atmosfera malsã e sem ar, como ocorre em Não Matarás, pode ser, na verdade, de uma violência assustadora e solenemente adulta em comparação com quaisquer malabarismos de projeções violentas das séries e do cinemão. Temos, por nosso turno e desgraça, sangue esguichando para todo o lado, o que essencialmente para nós é tão bobo quanto mel e é também desvalorização da humanidade.

Se o cinema é uma arte duvidosa, as séries são unicamente arte, porque a dúvida é deveras abstrata para um produto (literalmente, produto) que basta a si próprio e morre nas conversas de corredor. Talvez as séries, para virarem adultas, devessem inspirar-se no que há de mais paradoxal, horrível, insustentável e abrupto no cinema, quando ele, por exemplo, ao ter seu sonho de Grande Arte destruído, viveu um terrível pesadelo, o de Saló de Pasolini, e quando ele, no momento em que tinha nas costas toda a metafísica da imagem, engendrou, através dessa mesma imagem, a maior expressão da Palavra. Mas quem esperaria tal disparate?