16/12/2020
No quadro geral, vislumbrava uma peça sentimental ou das que rebentam e invadem todos os espaços, nos fones e caixas de som, e por um período se associam intimamente ao cotidiano; é um movimento cíclico; fenecem, dão o lugar e logo surgem substitutas — a fila de sucessos. Alguns artistas têm êxito com frequência, outros se dissipam e passam a ter, em evocações futuras, a identidade colada àquela sua respectiva peça que, durante um tempo, marcou o cotidiano. É talvez por isso que invariavelmente a um sucesso destes é reservada nostalgia futura. E assim, por longo tempo pouco reverenciei a música.
Passei a conhecer Beethoven e a partir daí a música se tornou fundamental em minha vida, não um efeito de flutuação externa, apêndice dum evento ou passagem da vida, transporte ou plano de fundo a uma manifestação de júbilo de uma festa, mas sim uma sondagem radical nos embriões da condição humana, algo por vezes assertivo tanto quanto um clássico da filosofia e por outras lírico e trágico tanto quanto um Shakespeare. Tal virada de chave reside talvez na concepção de arte presente na música de Beethoven, sempre por inteira e calcada na ideia de arte como transformação, na representação do absoluto e da amplidão da condição do ser.
E agora celebramos os 250 anos de Beethoven. Este terrível ano de 2020 traz componentes particulares ao jubileu que, a rigor, é uma janela aberta para um ato de amor e reverência à obra do compositor. Beethoven é um dos pilares da expressividade humana, na guerra e na paz. E, claro, também no pesadelo sem fim, quando pouco temos a dizer, e a representação dos grandes criadores transcendem do prosaico, desalienam para dissipar. Na Medeia de Eurípides, é dito que em banquetes a expressão criativa humana (no caso, o canto) é supérflua, enquanto que na aflição é fundamental, alentadora.
Presente que é na cultura pop, que tudo banaliza, Beethoven comumente causa certas impressões nas pessoas, indiretamente que seja. Depois de um primeiro contato, a princípio seu temperamento tempestuoso e arrebatador, que se reflete musicalmente, causa de fato certo êxtase e como que varre a quietude malsã da alma, alçando esta ao estado de inquietude cuja paragem rarefeita não se pode mensurar: o poder da música de transcender do concreto prosaico, para enfim abraçar a imensidão e o mistério da vida.
Porém, este aspecto destacado é apenas uma faceta de universo cheio de outros elementos de expressividade. Em suma, Beethoven não se restringe ao temperamento furibundo e grandioso, à ênfase, por vezes é bucólico, singelo, austero etc., o lirismo encontra a expansão, a expressividade dobra, repele e satiriza a forma; a ternura se envolve em tom agridoce — sobretudo o discurso musical se desdobra sem deixar de carregar de forma coesa esses diversos componentes da expressão do ser e da existência, e assim temos passagens, mudanças bruscas de humor, surpresas, variações.
Em suas primeiras obras, vemos o consolidar de um domínio das convenções formais de sua época, nas quais paulatinamente Beethoven adiciona a sua marca. O desenvolvimento de sua obra, das primeiras composições até a fase madura, representa quase que uma apoteose: com o tempo, os limites formais serão por ele moldados, e então Beethoven, verdadeiro mestre consumado, transitará entre o divino e a fragilidade humana. O mesmo homem que compôs a transcendental sonata para piano “Hammerklavier”, op. 106, praticamente uma sinfonia brutal para piano, com movimento lento a soar como um murmúrio de um deus, escreveu também o “Cântico de Agradecimento à Divindade por um Convalescente”, terceiro movimento do quarteto para cordas op. 132, cuja expressão singela e genuína faz calar, de tão pobres, as palavras, incapazes de dizer algo à altura.
Tchekhov escreveu que, para quem ama ou odeia, a palavra é indiferente e desimportante, e que, para quem sofre, a palavra nada pode verdadeiramente significar. E assim, Beethoven possibilitou à humanidade prescindir da palavra para perscrutar a alma de sua existência.