04/12/2022
i.
Hammerklavier e Quarta Sinfonia de Brahms revisitadas: a cada retorno me estala o pensamento de que seus movimentos, para além de estruturas e passagens propriamente formais, calcadas num valor musical em si e puro, são estados de reflexão e sentir.
No andante da Quarta, depois de turbulência, há como que a elevação de um zumbido, de uma lufada, e a princípio é relaxada a tensão, porque surge logo em seguida recapitulação de tema anterior do modo um tanto que acidulce, a soar como sentir que, depois da abismal aflição, a um só tempo denota resignação e olha para frente — que se prossiga o caminho, com a marca da gravidade talhada na alma; porém, este sutil e dorido alívio é perturbado por passagem ameaçadora e pesada ao final. Há muito sentia o terceiro movimento um tanto fora de lugar, isoladamente valoroso que seja: em meio à atmosfera da obra, me intrigava esta intromissão festiva. Mas talvez opere, no caráter festivo de tal movimento, oblíqua inquietação, uma prenda de embriaguez, distração de circular delírio para, intuindo-se no germe o teor do último movimento, arrebatar um pouco o espírito de tanta severidade, tal qual oráculo que, antes de evocar o terrível, convocasse festa.
Ocorre nos movimentos extremos (inicial e final) uma relação de sentimentos parecida, mas há ponto final. O primeiro exprime paragens cuja beleza é frágil e edifica, e o seu curso se dá no estreitamento imposto pelo caráter inadiável do fim, pulsando a gravidade e o desespero que contornam tal fecho. A gravidade frente ao curso irremediável evoca uma grandeza de espírito, e segundo uma ideia velha de Nietzsche tudo o que é grande acaba por, em sua própria grandeza, engolir-se. No quarto, a obra representa continuidades e quebras, repetições e revelação, sua atmosfera é de uma queda sob formas arcaicas.
A Hammerklavier me sugere outros estados. Representa uma tristeza pura e genuína, profunda, não a refletir um desencadear trágico, ou uma turbulência interna, tal qual o próprio quarteto Serioso. A força do primeiro movimento não é trágica, soa como uma grave demarcação de espírito, pois, a partir dali, a atmosfera repele o que é mesquinho e não sério. A mudança de tonalidade, operada a partir da repetição, no primeiro movimento, do tema principal, ilustra a impossibilidade de retorno: é tempo de decisão. E por mais que seja eloquente e assertivo o primeiro movimento, exprime em seus flancos certa melancolia. Depois do scherzo cortante, do adágio dorido, com escala majestosa, mas íntima e profunda, suspensa tristeza com fio de senso de continuidade, surge a expressividade plena do ser, como se emergida do abismo da angústia a plenitude do ser fosse.
Diferenças que tenham, o senso de continuidade e movimento faz destas duas obras expressão de estados. Expressam muito da vida. Não importa tanto a direção do desfecho quanto a seiva humana de expressividade dos estados.
Beethoven não gerou uma obra desesperada — em seu desfecho — como a de Brahms, pois levanta a outro estado a expressão nascida nos vales da angústia. Por seu turno, a Sinfonia parece ser mais universal, ao não ser um sistema tão íntimo e hermético como Hammerklavier. Se a tragédia sintetiza em um personagem a queda trágica do gênero humano, o intimismo da sonata abriga uma história de um deus singular e solitário.
ii.
Um dos motes de Inferno, livro de Strindberg, é a ideia de que a origem humana parte de um estado de beatitude, doçura máxima, divina. Se é verdade que tal lembrança acossa a melancolia, a nostalgia, ao serem contrastado os dois estados — a beatitude frente ao duro presente –, essa consciência também é uma base, latente que seja, por sobre a qual repousa o turbilhão angustiante das aflições terrenas e das agitações sujas da vida urbana, a fazer arco até encontrar certo repouso desse mesmo mundo na conversão final, ou mesmo a quietude decorre simplesmente do fecho narrativo, a estancar a opressão. Kierkegaard se detém na questão da origem humana só de modo a nos equiparar a Adão em essência, e embora o desenrolar teórico seja esmiuçado, a questão lhe parece ser secundária. Seja como for, fica em aberto, e ele assim o assume, a ação da serpente, o que poria em contradição a possibilidade de não enganar Deus. Em suma, não temos uma origem sublime, não temos para que nem o porquê de retorno. Pelo contrário, o que temos de grandeza está no porvir, necessariamente atravessada a vida, necessariamente por meio da angústia.
Como clássico de filosofia, até se tem embates conceituais, como no que toca a Hegel. Da mesma maneira, quase sempre não são lisonjeiras as suas palavras sobre seus contemporâneos, mostra-se mesmo uma insatisfação pela sua época. Porém, são questões secundárias. Também com o conhecimento teológico. Kierkegaard chega a comparar monges austeros a rebeldes descrentes — os dois seriam demoníacos, isto é, angustiados diante do bem. Embora empunhe as espadas da luta erudita, o cerne, o porquê do conhecimento em Kierkegaard repousa noutra coisa.
Senso comum e ditados são bem mais frequentes. Para as questões terrenas, não raro diz que o bom senso comum geralmente dá conta do assunto. Mesmo para retrato de estados.
Alguns pensadores aparecem. Por outro lado, as referências da arte têm um respeito maior, em especial as histórias dos Irmãos Grimm e Shakespeare. Enquanto referência intelectual de suas obras, Sócrates tem maior força — como chega a citar Platão especificamente, vê-se que Kierkegaard tinha certa noção das complicações de se repartir o que é Platão do que é Sócrates, tanto que se mostra muito crítico a Xenofonte, uma das vozes de Sócrates. Contudo, em primeiro lugar, separa a visão de mundo cristã, da qual pertence, da pagã (cujo ápice é a grega, a época sua contemporânea rebaixada frente a ambas). Em segundo lugar, outro tipo de referência fundamental são eventos artísticos observados in loco por ele, como exposições, peças, circos itinerantes.
Mas, sobre esse lado de construção da tessitura do texto, nada é mais relevante em Kierkegaard do que o exemplo. O funcionário do castelo que, de tanto distribuir o cartão do rei, se esqueceu de quem era. O médico do hospício inclinado a achar que não está sujeito à loucura. O simples aldeão à espera da mensagem do rei. O pregador que só pela seriedade consegue repetir o alcance de seu sermão. Espiões, juízes, policiais, funcionários etc. São espécies de miniaturas narrativas: não desviam por muito da linha narrativa, antes as reforçam. Talvez por isto um livro denso seu, com várias camadas, tenha em termos de extensão poucas páginas. E apesar da coerência dos conceitos e desdobramentos, não se atém muito em um ponto.
Kierkegaard não simplesmente escreve. Nunca a atividade intelectual soa como algo banal. É algo decisivo, crucial. É integrada a uma visão de existência, envolve a fé. A tarefa e o dever do pensamento não prestam conta para homens, fincam o olhar nas questões de ordem existencial, cuja repercussão passa pelo alvedrio espiritual próprio. No espírito, afinal, ocorre a batalha, ocorre a conquista da vida. Não tem importância a flutuação da opinião, pois o que move a atividade intelectual diz respeito à espada por sobre a cabeça de cada um.
iii.
A reminiscência da grandeza assalta os momentos banais. Por vezes, retorno da padaria apenas, e reverbera no ar defronte de minha cabeça o nome Hammerklavier. Aparentemente, por vaidade fingida do intérprete ideal. No fundo, contudo, me move indiretamente a lembrança de que um homem criou aquilo — compartilho de sua condição e, por isso, de sua grandeza.
No instante seguinte, o discernimento básico e mesmo prosaico aponta tudo isto como vãs fulgurações, pois não podem tais elevados sentimentos, em absoluto — sim, a ambiguidade da expressão –, parar de pé, diante de toda a realidade e sua agitação.
Ou antes: a realidade me é indiferente. O que ceifa vem de dentro, e a tarefa é deveras pesada, o desafio soa demasiadamente desbalanceado desde sua premissa, não se pode saber com exatidão a diferença entre a redenção e o terrível.