Antolhos

30/01/2023

Manuel Bandeira traz a brilhante ideia de que a obra Helena fora escrita em meio ao sentimento de ambição de Machado de Assis de ascender socialmente De fato, muito inteligente. 

O próprio Machado de Assis adverte sobre o tom da obra, “correspondendo assim ao capítulo da história do meu espírito, naquele ano de 1876”.

Por exageradamente que soe o idealismo deste livro por vezes, há um sutil e perspicaz retrato das relações sociais. Machado de Assis nunca precisa patentear a sofisticação de seu olhar, e está tudo lá. 

E viver em sociedade se assemelha a pisar entre estilhaços pontiagudos, exige traquejo, dizer o contrário do que se sente, fazendo isto como que por reflexo e, a um só tempo, a adivinhá-lo em outrem, fingir, erguer-se pelos próprios cabelos, sobreviver. Qualquer movimento abala suscetibilidades, antecipa vontades, projeta inextricáveis novelos de reação, não havendo limites inequívocos entre as coisas, entre o gracejo e o escárnio, entre o ser lacaio e o prestativo, a resistência e o colapso, entre a resignação, a paciência de boi e o desprezo vulcânico.

Doce maldição: os antolhos, no fundo sinto, nunca saíram de minha face. Pois bem! Já era o tempo, afinal tal consciência é a única vida que me é possível. 

Como exigir exatidão e verdade em coisas sociais sendo que, no âmbito da existência, o abismo não está longe do altaneiro? 

Não importa. Antolhos. Como houvesse sempre sozinho, parar de falar com alguém não representa nada. Na verdade, de quando em vez pululam algumas reminiscências dispersas, mas ruem ao vento, dissipam-se tão logo vencida a irrequieta insônia.

A sensibilidade não está morta. Uma carta reverenciava, cultuava os bons sentimentos de amizade e de amor. Tem seu valor literário até, mas em termos práticos não tem razão de ser. E que assim seja!…

De certo, este pórtico poderia ter maior graça, efusão e afeto. Contudo, levanto-me, a brisa me afaga as dobras da máscara rija, e todo o caudal de confusão soa como irrelevância zombeteira e desimportante diante dos alinhamentos perfeitos e acabados da criação.