Maus pensamentos (VII)

07/08/2022

XLIII. É noite, há chuva, os ventos anunciam um tempo vindouro terrível. Sob cada copa de árvore, na praça, se encosta um homem, quem sabe a proteger-se da água, ou antes, como ninja, à espreita, prestes a executar uma conspiração violenta. Não há como não pensar no engano, mas não no que fora circunstancial ou estratégico, que, afinal, tem o seu porquê. No lugar, sim, algo cuja essência tristemente se constituiu. E não há o que ser feito.

XLIV. — Há a graduação. Na verdade, é só o começo. Depois, vêm a especialização, o mestrado e o doutorado. O pós-doutorado, a livre-docência. 

— Eia! Tal trajeto me é indiferente. É como um especialista em prego a discorrer sobre as miudezas de seu saber — a constituição, as degradações químicas, as etapas.

— Mas é algo necessário. Gostaria de construtos cujos alicerces são fracos, afinal não têm bons pregos? E se seu cinismo não é acossado por isto, pense simplesmente em seu próprio alicerce pessoal. Não quer uma vida boa? 

— Uma questão de medicina deve ser dada a um médico, não a um rétor. Pois bem. Como não concordar com Sócrates? Porém, o médico pode ser ruim, desprezível, pode sequer olhar o seu paciente, pode estar a serviço da morte. Seja como for, não posso conceber o conhecimento e a sabedoria em um ambiente de culto apaixonado à técnica. Dentre todas as corrupções, preciso viver sem esta.  

XLV. — A sabedoria paira sobre a cabeça dele. E não há peso, não há tensionamento algum, pois a genuína sabedoria envolve a simplicidade e generosidade. Sem falar que não atualiza o currículo acadêmico faz uns sete anos. 

— Consolidado na carreira que está, não precisa correr atrás disso. 

— Mas, entre todos os seus colegas, todos muito bem consolidados, até em maior intensidade de qualificação, é o único que assim o faz.

XLVI. Ivo Barroso! Que será feita da literatura? Cada vez mais falam a palavra literatura para fazer referência a estendais de textos modorrentos das ciências! Teu trespasse, para além dos pesarosos componentes humanos mobilizados pela morte, é também um encaminhamento rumo ao ocaso do ofício das letras, ofício este, a rigor, incumbência de uma existência inteira, singular.

XLVII. Saibas desde já que os frutos cairão nas palmas de tuas mãos. O adeus ultrapassa o dia e, tal qual a morte, não é um mero fecho, pois há o que fica, e fica a errar por aí, um pouco sem tato, razão, sentido. 

XLVIII. Estas mãos dispõem de outro tipo de pena. Na verdade, seguram uma caneta qualquer e produzem letras talvez incompreensíveis, desleixadas. Desta forma é como se as folhas não precisassem, depois, arder no fogo. Pois bem! 

Um despertar momentâneo. Certos olhares e toques exilados. A mão dela se afunda em minhas costas, meus trajes então formam um conjunto burlesco: uma camiseta mais ou menos justa, preta, com a estampa de uma figura colorida, quase que infantil, a bota e calça ásperas. E sobretudo, ao redor, a figura gigantesca e sem valor de um conglomerado de ditos e saberes práticos, mergulhada para sempre na minha indiferença.

XLIX. Mas saibas que assim foi não por premeditação, que este vazio interdita um espaço. No gesto de adeus as minhas mãos, em vez de caírem, continuaram no ar porque tuas mãos as seguraram.