03/07/2022
XXXVI. No setor público, não sei se também no privado, falar conscientemente e com propriedade siglas e reduções de nomes de departamentos ou de outras unidades — mesmo de nome de pessoas, no caso paulista — é um atributo valioso, a denotar competência, experiência e capacidade profissional. A quem está no começo de jornada institucional fica estendida a confusão.
— Passa pelo DGA, Fu começa dizendo (“Fu” de fulano), validado pelo CETON, a TIVESP aprecia, a Pri retoma o contato (…).
E enquanto se almoça, enquanto se está, depois do expediente, no transporte coletivo, no bar, fala-se de trabalho, quiçá em meio aos sonhos.
XXXVII. É curioso o código de conduta cordial dos adultos esclarecidos paulistas. Ser este adulto é tornar-se qualificado, ativista da terapia, dispor de repertório de memes e maratonar séries. Sendo de Osasco, adulto, me enquadro nisto? Osasco sempre me pareceu ser São Paulo em escalas menores, emuladas todas as misérias, escândalos, dinamismos, agitação, pujança mercantilista, mau tempo, ansiedade. O mesmo céu cinza. O mesmo céu sobre um crescimento ao mesmo tempo estratificado, ordenado e anárquico (certa cena de Pasolini: “nós, fascistas, somos os únicos anarquistas verdadeiros, naturalmente, uma vez que somos senhores do Estado. Na verdade, a única verdadeira anarquia é a do poder”).
XXXVIII. Talvez haja coisas só de Osasco. Seus edifícios públicos, por exemplo, têm como cor predominante um alegre verde. Ah! como evoca ambiguidade de sentimentos o cemitério de Bela Vista, aquele seu verde infantil e risonho a contrastar e a abraçar o luto e o repousar da história coletiva de uma cidade, e por mais que lamurie o céu em lágrimas, talvez o ignoto sentir nunca soe melancólico em demasia. Certa vez, ouvi de uma pessoa bem sucedida que viajar para Bogotá era visitar um laboratório de políticas públicas, por conta das variadas iniciativas públicas (como as de transporte) a marcar a experiência social cotidiana. No mesmo Bela Vista ficam bem contíguas entre si, formando espécie de bloco, instituições públicas de saúde, creche, escola, secretarias e alguns hospitais, sempre com árvores por perto, sempre com aquele feliz verde das paredes e uma aura de amparo. Amparo: tem-se a acalentadora e doce como a infância noção de que, quanto à saúde e educação, serão providos a todos os pilares básicos da dignidade, as vacinas, os cadernos, e os filhos e as avós serão atendidas.
XXXIX. Tal patrimônio não é necessariamente perene. A ótima biblioteca central de Osasco está abandonada há muito, nem abre, e fico a imaginar aqueles livros todos cerrados, dissipando-se. Pena. Frequentei bastante essa biblioteca durante a época de curso pré-vestibular. Depois, durante a faculdade, passei a frequentar as da Universidade de São Paulo. Adorava sobretudo ir sem planos, errar pelas prateleiras até pegar emprestado algum exemplar que tivesse me suscitado, num instante, algum vago interesse — ah, este autor ainda não li, parece ser fundamental. Porém, parei com essa prática, por causa, claro, da pandemia e término da graduação (diga-se que o conhecimento especializado de nossas academias não é propício à leitura). Mas, não só isto. Guardo a noção de que devo ter biblioteca pessoal, incrementando-a. Afinal, em um feriado, caseiro que sou, quando me assaltasse a vontade de ler Fernando Pessoa, precisaria tê-lo por perto. Há uma formação fundamental, certos livros incontornáveis, pilares do que sou e, por isso, devem estar no meu lar, devem ser meu lar.
XL. Não se melhora com o passar dos anos. Pelo contrário, se houvesse alguma tendência, seria a tendência de decadência das virtudes, com acirramento do cinismo e da impaciência, com enrijecimento dos bons sentimentos. O horizonte se restringe ao modelo exato dos interesses. Contamina-se. Para a velhice, pois, só há dois caminhos. O caminho da sabedoria ou o da ternura. Um senhor que não é sábio e não dispõe de ternura e doçura é um exemplar humano lamentável, estridente, encorpando a caceteação do mundo.
XLI. O intelectual é um chato. Em certo filme de Jacques Tati há paródia a fazer troça disso: um bar, ambiente de férias, leveza, e lá está um sujeito a discorrer, com ansiedade, sobre Roland Barthes. Sim, o intelectual é este sujeito, traz enfado em meio a uma festa. Acontece que o entretenimento faz de tudo uma festa. Acontece que a universidade só tem espaço para o conhecimento técnico e especializado. E assim, o intelectual é, mais do que nunca, um chato — um chato em extinção…
XLII. Em meio ao trabalho burocrático de minha época de estagiário, deparei-me com as seguintes indicações: Rua do Estilo Barroco e Rua Verbo Divino. E então, imediatamente esboçei um entusiasmante projeto intelectual, o de arrolar nomes especiais de ruas. Sim, influenciado por aquele poema de Manuel Bandeira a exaltar os nomes poéticos e singulares dos logradouros, em contraposição a homenagens a autoridades. Rua da Saudade… Pois bem. Em meu bairro natal, se não há poesia nos nomes das vias, pelo menos há uma aprazível configuração: as ruas seguem uma lógica geopolítica — há a rua Itália, Portugal, Japão, Líbano, Suíça, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Argentina, Colômbia, Equador, Canadá, Venezuela, Chile, México, Tchecoslovaquia, Guatemala, Honduras. E em época de Copa do Mundo a bandeira de muitos desses países é desenhada no chão.