Maus pensamentos (V)

05/06/2022

XXIX. Curioso. Assisti ao filme A Ponte das Artes e, poucos minutos depois, a um concerto de Jordi Savall regendo a sétima sinfonia de Beethoven. Acho os filmes de Eugène Green bem bonitos, mas tão fleumáticos, tão plácidos do ponto de vista das teias dramáticas, parecem-me destituídos de atributos teatrais, sempre vejo seus personagens como seres rígidos e abstratos, sem paixão. No filme A Marquesa d’O, de Éric Rohmer, por exemplo, também há certa formalidade, refinamento estilístico, mas dá para sentir a carne dos personagens. Seja como for, este A Ponte das Artes é uma obra extremamente corajosa do ponto de vista político, e a aparente fleuma dramática passa a ser secundária diante de seu sutil e ao mesmo tempo radical protesto contra o burocrático e mesquinho poder, senhor dos meios acadêmicos, contíguos à produção artística; o filme faz um retrato dos caprichos, humilhações e arbitrariedades operadas nas instâncias de poder desses ambientes sob o pretexto da mentirosa excelência técnica, violência esta que é o oposto do que sugerem o conhecimento, a sabedoria e a arte. E a frieza dos inadequados, longe de ser uma deficiência dramática, está bem próxima da genuína arte, tal qual a inocência de um pássaro esfolado. Quando cala o último acorde da sétima sinfonia, Jordi Savall, até então em postura grave e impassível, abre um doce e luminoso sorriso para sua orquestra, da qual todos exprimem contentamento e alegria generosa, como que satisfeitos diante da beleza e do trabalho humano para erigir essa mesma beleza. 

XXX. A pretexto da técnica, em nome da vaidade da distinção social, cria-se código de conduta segundo o qual, para supostamente alcançar-se um bom trabalho, se torna um técnico não só dentro da técnica, para citar o verso de Fernando Pessoa, mas também fora da técnica e em todas as esferas humanas, imola-se o inadequado e sua síntese, a esfinge ignorada.

XXXI. Na páscoa anterior à cruciante pandemia, lia Amerika, romance inacabado — como todos os demais — de Franz Kafka, do qual não me esqueço da expressão da ternura e afeto, à guisa de resistência e que acaba por sucumbir diante das terríveis, nauseantes e inextricáveis configurações da vida urbana. Deus! Nada garante que a pureza e inocência não sejam esmagadas pelo mal. As palavras de Pascal assustam: “e assim, não podendo fazer com que o que é justo fosse forte, fez-se com que o que é forte fosse justo”.

XXXII. Agravada até o limite pelas mãos sórdidas, a pandemia no Brasil foi uma mórbida política de morte em massa, deliberada, premeditada, cercada pelo escárnio, pela ausência de respeito à vida e ao sofrimento do outro, pela ignorância que tudo destrói. Por mais que descrever este crime contra a humanidade soe repetitivo e ineficaz do ponto de vista da responsabilização dos carrascos, Jair Bolsonaro o principal, por mais que o sofrimento e trauma de tantas famílias não possam ser aplacados, não se deve esquecer, jamais, o que ocorreu no Brasil nos anos de 2020, 2021 e 2022, a incrementar o rol de questões brasileiras pendentes. E a ideologia cultural tenta tirar esta questão de seu único foco necessário — Lisboa está arruinada e dança-se em Paris –, tenta atribuir um sentido pedagógico à pandemia, que, assim, veio para mostrar, veio para alertar, de modo a gerar um novo normal, uma oportunidade para autoconhecimento e inflexão nos velhos hábitos. Ao diabo! 

XXXIII. O recital. O mundo, momentaneamente, como num sonho, reduzido à sala escura, calado. Não se contam os segundos e nem os minutos. O programa tem coerência e sentido, atravessa talvez séculos de temperamentos díspares. O artista é um austero e solitário mensageiro. Veste-se de preto e apenas há nudez acima dos ombros, além de suas mãos, cujos movimentos desenham uma lide a impressionar, física, precisa e, para cada detalhe, incontornável. Do piano a música preenche a sala, dir-se-ia que tais notas não se encerram nos limites calcários. E as portas se abrem, a luz e os alaridos urbanos retornam. Por enquanto, não se sabe até quando este interlúdio poderá manter de pé a fantasia. E basta. 

XXXIV. Hoje me despeço. Sou grato pela recepção e pela oportunidade de aprendizado, sinto-me afortunado por ter sido colega de pessoas tão extraordinárias, individualmente e enquanto equipe. Se agora pude doar o sangue, no cenário de desolação pandêmica, de ilusões perdidas, nada tinha a oferecer, não acreditava sequer na mera articulação de palavras. E então, de premissa, só poderia valorizar esta chance de redenção, sensação esta que ficou grande no instante em que caí justamente nesta equipe, a cujo estuário agora pode volver luz inteiriça. No quase um semestre de presença, ficou-me escancarado o quanto vocês todas procedem sempre de maneira genuinamente humana, reforçando ao mesmo tempo que isto nunca foi incompatível com o trabalho impecável e profícuo, presente na sala, até porque, afinal, a razão de ser das políticas públicas é insofismavelmente o âmbito humano, apesar dos aniquilamentos forjados pela especialização. Por esguio que aparente, por curto que tenha sido, foi-me decisivo. Obrigado. Adeus. 

XXXV. Viajar. Conhecer museus, cartões postais, acumular fotos, trazer presentes e lembranças materiais, aventurar-se por trilhas, com percursos fantásticos e cenários descortinados sublimes; de um lado, as arcanas fundamentais à história cívica; de outro, os grandes monumentos da natureza. Visitar verdadeiros laboratórios de políticas públicas, veias cosmopolitas ou grandiosidades transcendentais de cadeias geológicas. Sorver culturas, de seu cheiro aos aspectos contrastantes do ponto de vista moral e de costume. Sentir um frio e um calor diferentes, um mau tempo novo, uma prostituta nova. Saber a localização dos estabelecimentos, o nome dos pratos, das sobremesas e das coisas de ordem prática. Enlevar por conhecer as burocracias aduaneiras. Deparar com confusões idiomáticas e de hábitos. Passar por situações imprevistas e de difícil resolução, por perigos de roubo, de agressão sexual, de provisória miséria e incomunicabilidade, cuja urgência de momento, depois, se torna uma passagem burlesca, memorável e, sobretudo, edificante. Certa vez meu filho me ligou desesperado, estava fora do país sem nenhum tostão, embevecido fiquei, disse a ele que não o ajudaria e que aquela iria ser a melhor viagem de sua vida — eia!, como diz Rosa, mestre não é quem ensina, mas quem, de repente, aprende. Viajar, ralhar os criados — meras crianças –, guias, tropeiros, escrever, desenhar em traços disformes paisagens e autóctones, chegar, partir, acabar, estiolar.