Maus pensamentos (IV)

08/05/2022

XXII. Bom dia. Esta situação só agrava o meu cansaço. Os senhores e senhoras mexem com expectativas, trajetórias e falta de trajetória, entendo que é natural buscar-se o melhor, mas sejamos mais sinceros e transparentes frente aos enjeitados — agora é só esperar, dizem. Em nossas entrevistas, cuspi no chão, fui incapaz de articular simples ideias, esboçar esguia possibilidade de futuro? Talvez nos contornos do embaraço inerente e nos limites dos traços rudes se radica uma força latente, cujo desassossego espelha um sentimento de cólera selvagem e bárbaro. Cuspi, portanto, no chão, com a articulação e consciência de um Caliban praguejei, e presente e futuro devastados foram: no espaço amplo e majestoso, outrora prenhe de promessas, os desejos remotos e ilusões se afundam no pó do chão.

XXIII. Havia uma escada estreita e obscura, ao fim da qual se chegava ao recinto principal, quase uma sala de espera de consultório qualquer, diferente apenas porque sem luz e revistas e distrações. Dois cumpridos assentos frente à frente retirados das vísceras calcárias das paredes; as portas pareciam velas a desmanchar-se em lágrimas sob o fogo. No vidro verde e maciço da alcova havia fissura, e o cinza urbano de fora era borrado por este vitral profano mutilado, os ônibus produziam ruídos trêmulos, agitadas, as pessoas corriam até a lotação. Foram ditos gracejos amarguradamente desprovidos de carne, a carícia foi coibida no limiar de seu ímpeto, projetou-se a imagem de uma família, e jaz na urna o segredo da palavra que não pode ser dita. 

XXIV. Sempre me pareceu ser ele um personagem curioso. Nunca houve um comentário negativo a seu respeito! Na verdade, era amado por todos, durante as suas aulas a sala se apinhava de gente, e se necessário fosse seus admiradores assistiriam às aulas pendurados nas janelas, ou mesmo largados no chão. Preenchia metodicamente a lousa e, para manejo do giz, punha à mão uma luva descartável, quanto ao horário de início e encerramento de aula, tinha uma pontualidade religiosa, chegava um pouco antes e, caminhando de um lado para o outro, ficava a olhar o relógio, até o exato momento em que os ponteiros lhe autorizassem o início da aula. Era intolerante a quaisquer conversas paralelas de alunos, pedia para que fizessem silêncio ou, às vezes, usava da ironia, convidando os tagarelas a darem a aula. Costumava dizer que seu escritor favorito era Jorge Amado, que, além da obra — da qual citava sempre Tenda dos Milagres –, tivera uma atuação política admirável, neste ponto o exemplo oposto, segundo ele, do que fora Carlos Drummond. Fazia questão de exprimir sua admiração por Fernando Henrique: “na idade de vocês, dizia ele entusiasmado, não estava no cursinho, não, estava a dar aula em cursinhos, e aos vinte e seis anos já era professor da USP! Independentemente da política, foi brilhante, não é um qualquer que ganha a pecha de Príncipe”. E como foi comovente a forma como seus olhos brilharam e levemente se umedeceram quando falou da nobreza do magistério: “Florestan Fernandes e Fernando Henrique guerreavam semanalmente, porém havia, no fundo, um respeito enorme, pois ali estavam, no plenário, outrora aluno e professor, e só quem sobe neste estrado passa a compreender o grau de sentimento de quem, antes, fora seu mestre”. Mostrava-se à esquerda, se era razoável seu pai, dizia, já de idade, apresentar inclinações conservadoras, não lhe passava pela cabeça, por outro lado, o porquê de um jovem fazê-lo. Detinha um repositório de troças e ditos espirituosos, aparentemente mobilizado a cada nova turma. Chegou a dizer duas vezes sua tese sobre o mundo da paquera: “se no meio da dança a pupila da garota se expande, é batata!, é porque tem interesse”. Que se registre que nada, nenhum dos seus maneirismos, perturbava sua unânime e benquista reputação, em especial entre as mulheres.

XXV. Sempre me pareceu ser ele um personagem curioso, até que, certo dia, passou a intrigar-me. Na verdade, era amado por todos, não obstante bastasse, ao fundo de sua figura bonachona, esguia, de seu óculos burlesco e de seus frequentes gracejos e trocadilhos, um olhar mais atento para revelar o antipodismo a tudo isso. E houve certo dia, o da derradeira aula, às vésperas da segunda fase dos vestibulares, diante da qual os cursinhos costumam minguar; depois de um tempo, só ficaram em tal aula três alunos, três homens, e, a partir de um pretexto qualquer, proferiu uma lição de vida a respeito das mulheres: “há exatos dois momentos na vida de um homem em que se faz enorme besteira por mulher: quando se é muito jovem e quando se é velho. Não se tem como fugir do que escreve Karl Marx a respeito do casamento. Sim, a pessoa só se casa no escopo reduzido de seu espectro social. Em vez de inspirações e aspirações amorosas, agrupa-se, sempre, dentro de sua turma. Recentemente estive num jantar com velhos colegas de faculdade: todos eles já divorciados, mas, vejam só, apaixonados, tagarelavam sobre suas novíssimas amantes. E em seus crachás e em suas carteiras ficava atestado: fulano é engenheiro, outro é arquiteto. Ah! São bobos ou o quê? Seria isso algo além de interesse? Estão cegos? Dentre eles, apenas eu, eu, o professor, pacato, apenas eu sem companheira. Estamos entre homens aqui, venhamos, tenham todo o cuidado do mundo, são jovens”. 

XXVI. Guimarães Rosa tem uma grandeza que me afasta. Apetece-me muito mais a obra de Graciliano Ramos. Osman Lins chega a questionar o elemento da oralidade presente em Grande Sertão: Veredas. Segundo ele, não dá para conceber alguém a falar daquele jeito. De fato! Seja como for, é apenas um apontamento, afinal Guimarães Rosa é um dos maiores. Limito-me a dizer somente que de suas obras não estou perto. Ilustro-o com o caso da promessa: por uma semana, Riobaldo renunciava ao cigarro, ou doces e café, e, com isso, se atingia o que fora fixado na mente. De minha parte, creio-me incapaz de ter fé e ser por esta agraciado. Até tentei há um bom tempo emular este pacto. Era um processo seletivo. Estava eu no limiar de um arranjo infausto. A pandemia estava prestes a ceifar o Brasil, e já tinha então consciência de meu fracasso e inabilidade no mundo prático e do trabalho. Temia ficar desempregado. Pois bem. Procedi à promessa. Não fui contratado. Acontece que, quase dois anos depois, passei a trabalhar em outro setor da mesma instituição. Talvez seja ironia da Graça para expor o quanto estou longe de Guimarães Rosa!      

XXVII. Em suma, se cachorro fosse animal confiável, quando Mefistófeles decidiu ir até Fausto, sua primeira forma não teria sido a canina; ainda, os cães não entrarão nos reinos do céu. Um turrão, um ranzinza cuja sensibilidade é ferida pelos latidos constantes e inesgotáveis? Talvez. Mas a questão não se restringe ao barulho em si. Simpatizo-me com os gatos, e seus gritos exasperados de amor à noite não me incomodam nem um pouco — e os turrões e ranzinzas cachorros protestam contra tal manifestação. Por outro lado, o ladrar coletivo ou mesmo avulso exaspera meu espírito. Imaginemos uma rua, mediana, com seus muros, cerrados portões, coleta rotineira dos resíduos, casas frequentemente, durante o horário de expediente, vazias, cada qual com seu amigão, a trazer muita alegria com sua viçosa ingenuidade e graça, incorporando-se na história familiar. Mas tal animal, ao ficar sozinho parte do dia, não lida bem com a solidão, e assim, uma criança a brincar na rua, sobre a bicicleta, acaba por estourar o silêncio, pois os cachorros vão ladrar para ela. O resultado disso é que se cria, nas ruas, um código de normalidade a dispor sobre condutas da circulação e da posse. Cada cão, em seu latido, fere o silêncio porque na rua residem e transitam elementos com potencial de perturbar a ordem da propriedade.

XXVIII. Freud e a sua esdrúxula ideia sobre o porquê de o cachorro ser, entre os animais, o amigo leal do homem: o cachorro não tem vergonha de seus excrementos e da coisa escatológica e, justamente por isso, se torna íntimo o vínculo entre cachorro e homem.