Maus pensamentos (II)

06/03/2022

VIII. Joseph Haydn costuma retomar passagens, e o que já ouvimos retorna transfigurado, e assim se brinca com as expectativas, modela o aparecimento repentino de novos humores e perspectivas na tessitura da forma. Em tais retornos, o significado expressivo já é outro, assim como nós mesmos, depara-se com o aspecto transformador da arte a que Nikolaus Harnoncourt tanto se referia. 

IX. A obra cujos motes sugerem a transformação, o olhar novo, a mudança, no instante de tempo suspenso pela perduração do discurso musical. Na leitura, isso se cria em intervalo de dias. Que dizer, então, das releituras, dos retornos? A cidade da infância revisitada não é um mero espetáculo material, passamos a transbordar memórias, que calam e morrem conosco, estão vivas mas a se dissipar.  

X. O corpo como ameaça, um instrumento de sofrimento físico. O suplício que vem de dentro, faz do estar acordado tribulação. E não se pode despertar. O temor da falta de ar assalta os momentos de repouso. Por que a falta de ar, o espicaçamento de algo tão básico e fundamental, ser o instrumento penoso da fatalidade? A ideia de sepultura sempre sugere o sufocamento, o ar cerrado nas tábuas do caixão e, para além deste primeiro cárcere, sob a opressão da gélida terra. O vírus pandêmico grassa também no espírito. Traz a peste mesmo para os não infectados.  

XI. A especialização nunca é o bastante. A ser fermentada sem fim e lentamente na ambição, na esperança por condições de vida melhores, no desejo, na necessidade, o cansaço de seu rito se torna suportável, manifestando-se somente por crises episódicas, episodicamente atenuadas pelos êxitos efêmeros, pelo orgulho do que já fora conquistado, bem como pelo temor de sua perda, e as palmas das mãos em concha levam a terra cavada ao morro da distinção social. E de repente tal labuta é a própria identidade do tempo. 

XII. No começo de tudo tínhamos a desigualdade. Escancara por todos os cantos justamente o canto infame do ser humano. Há muito a ser reformado. Mas a compaixão não tem força sozinha, atomizada. Inclusive, não passa de quimera e inconveniência juvenis a inquietude diante da disposição das coisas e das pessoas à guisa de coisas, lembremos, pois, da palavra do profeta da tecnologia, gênio inconteste e magnata, segundo a qual devemos arrumar nossos quartos, não o mundo. E o escândalo lá continua. Até que figura como mera e incontornável, inevitável mesmo, contingência. Acaba que, no começo de tudo, tudo busca a distinção. 

XIII. Por outra, a educação travou guerra contra a desigualdade. Eis a esperança, a causa justa, a luta. Mas, afinal, a qualificação, no seio educacional, tudo apartou, desenhou em pedra o desdobramento do sucesso, os caminhos sinuosos da abundância e do gozo. Seja como for, conflagrada a guerra, é tempo de ação, de mudar a vida das pessoas, um aluno que seja. E o fogo do inferno se rebelou contra os caprichosos desígnios e mandos do diabo e, ao prorromper-se inflamado num estouro, ruma na direção dos que expiam.  

XIV. A úlcera escancarada, o sangue fétido e putrefato, o magote de parasitas, as varejeiras apinhadas em fila nos varais, o doce olhar da vida genuína e ingênua contempla os murmúrios da dor, e na umidade de sua íris é refletido um sofrimento compartido, não o pasmo que a morte geralmente causa, e o homem simples e espontâneo trata as chagas, em vão, contudo sua impotente lide sugere um médico na condução da convalescença, há também o homem mesquinho, limitado ao cômputo de vantagens, mas há sobretudo a anciã, com alma de criança, mesmo que marcada pela exasperação e rudeza. Velado, nas veias da terra, no pó das paredes, no vento malsão de mau agouro, arrasta-se o comboio conspirador. As cenas mórbidas no interior de gruta não alarmam o curso das vagarosas nuvens.  A peste, antes de ceifar a chaga, perpetua-se sorrateira no tormento do espírito, não por meio de um comando biológico.