06/02/2022
I. Embevecido pelo concerto para violino de Brahms. Novamente. E todos seus instantes me são familiares, como se o escutasse desde o limiar da infância. Não. Na verdade, o que é aquele primeiro movimento? O quê? Talvez não conheça ainda todas sutilezas do concerto, é grandioso demais para mim. Tenho então espasmos líricos de grandeza, minha turrona alma esboça voo, e patenteia-se o já conhecido contraste desse sentimento com minha vida prosaica e ordinária, desejosa, bem cerrada e tímida. Pois bem. Talvez isso seja apenas agitação vã. Pois, seja como for, venha o que vier, esta música tem um valor em si, e a quero por perto.
II. O primeiro movimento da terceira sinfonia de Schumann exprime uma nostalgia, talvez nostalgia de uma genuína e perdida condição humana, de chofre assaltada, e daí o tom melancólico, pelas sombras das aflições terrenas.
III. O único procedimento possível é extrair o que se adequa, o resto apenas acarreta perda de tempo. Não se cai no sentimentalismo de ver pessoa como pessoa. Não. Fulgure como luz de relâmpago a pessoa profissional ideal, decaem, supérfluos, os dejetos, prontamente descartados sem mera mobilização de palavras quaisquer.
IV. Esta angústia cotidiana me mata aos poucos, com a regularidade de ponteiro de relógio. Aos esbarrões e de encontro a este espetáculo farsesco da vida, fermento, vagarosamente, uma inquietação surda e subterrânea, e há em mim certo sentimento perpétuo de fuga. Fugir, fugir e fugir. Do estreito horizonte do passado, do mundo concreto e sem mágica. Mundo este que, a despeito de todas as inclinações do espírito, nos encerra inapelavelmente.
V. Que eu me atente tão somente à concretude ao trabalhar. Que fiquem esse constrangimento e peso de se estar de lado. Meu modo de ser será uma evocação da poesia de João Cabral. Concentração fria e total na pedra rude. Mas qual a forma de se ater ao concreto? A vida nos faz pouco a pouco cínicos, ligados à utilidade, e fortalece um pragmatismo nas coisas e sentimentos. Por outra, talvez o cinismo seja o que me resta para poder sobreviver, pois não poderia extirpar na raiz as vestes das necessidades cotidianas. É necessário também um fundo espiritual, uma orientação firme da sensibilidade. Pois o puro e irrefletido mergulho no cinismo acarretaria um despeito pelo valor da vida. Devo, na medida do possível, ressuscitar certo senso ascético. Já sou sozinho, porém tenho a vida contaminada pelos resquícios da normalidade contemporânea. Ora, sou, talvez condenado a sê-lo, um singular. Ficar no limiar da porta da outra vida causa um sofrimento supérfluo.
VI. O Brandenburgo terceiro de Bach é uma espécie de amuleto para mim. Antes de sair de casa, em meio aos últimos gestos de arrumação desleixada, não raro o escuto. Houve uma época em que, aos domingos de manhã, antes de ir jogar futebol, ouvia Tô, a música de Tom Zé. Associava tal canção a um dia exitoso, mesmo com a consciência de sua eficácia duvidosa, pois, fosse como fosse, nada me demovia da impressão de que, embalado por essa esguia música, fazia boas defesas, corria tudo bem para o time. E todo aquele esforço e movimentação e toda aquela vontade de triunfar não eram um fardo, não eram cansaço, e sentia-me bem, antes de mais nada, por ser responsável, pelas minhas próprias mãos, por um destino. Era levado a sério o jogo, tínhamos coletes, uma boa bola, ótima quadra, mas principalmente se destacava a conduta de cada um. Ora, domingo de manhã, aqueles homens jovens todos, recém-deslocados da farra de sábado, do brilho dos amores e paixões, quase que em estado de sono, de repente se tornavam implacáveis, prontos a ralhar o companheiro do time por erro, desatenção, a reclamar duramente uma falta ou posse, a fazer de tudo, estourar os joelhos que seja, as canelas, para ganhar. Era uma lide, uma conquista que bastava a si, não sugeria nenhum idílio, nenhuma ausência de gravidade, e a despeito disso o ambiente não tinha o mínimo de peso, ou angústia. Pois bem. Agora o novo impotente amuleto tem pela frente manhãs bem mais duras, inflexíveis, incontornavelmente referenciadas, antecede a lotação, o trabalho, antecede e contorna certa vida opaca. Creio que o tempo nos faz cada vez mais cínicos e que pioramos. Talvez seja este amuleto mero ritual, oferenda velada, subterrânea, para que a alma enfim não decaia.
VII. Os concertos para violino de Bach me marcaram os momentos posteriores ao almoço, quando estava, e quase ninguém sabia, desempregado, e me assaltavam então uma angústia e incerteza de todos os minutos (para rememorar Nelson Rodrigues). Há, em tais concertos, passagens graves e decisivas. Se não trágicas, ao menos repassadas de uma urgência espiritual, e abraçavam minha inquietação.