Fado

26/01/2022

Pascal diz que não se deve ler nem vagarosamente, nem rápido. Leitura apressada, segundo Brecht, reduz o que é grandioso. Nabokov apontou a pressa que comumente há para que se chegue ao término de um livro, o que também abrevia e ignora suas sutilezas. E então voltamos a Pascal: assim como o viajante só viaja para se vangloriar de seu catálogo de lugares visitados, a leitura pode ganhar um teor meramente numérico. Vanglória à parte, há um senso de dever na leitura de certas obras, assim apontou Borges em um de seus contos referindo-se à Divina Comédia. 

Leio com muito vagar, posso ficar por muito tempo a ler um mero parágrafo. Sentiria quase que uma culpa se avançasse à força, sem ter compreendido o peso de cada uma das palavras. Creio que tal lentidão atrapalha o fluxo narrativo, a visão do todo, a sutileza da variação e mudança: não é o ideal, o melhor a ser feito — e ainda bem!

Meu cenário perfeito de leitura imperfeita é o seguinte: silêncio, livro em mãos, um ou dois braços formando um V, um grande dicionário e água. Claro, o imperativo da necessidade força a leitura em lugares públicos, salas de trabalho e aula — é a única coisa a ser feita nestes espaços, porque talvez seja a forma de meu ser, isolado que está, defender-se, pois em tais momentos exprime uma vida autônoma, diferente do resto, excluída deste mas a velar por um sentimento de nobre resignação, como a de um rei escorraçado da própria terra e que, apesar de tudo, conserva no espírito sua imensidão – e isso constitui a sua resistência.

Às vezes este tipo de leitura desperta curiosidade. Houve gente que, ao me ver, perguntava qual era a obra. No caso de um professor da faculdade, notava o quanto ele também sentia entusiasmo por literatura, o quanto queria saber de fato, para talvez reconhecer e rememorar algo que já lera, e então lhe dizia o título. Mas, na maior parte das vezes, ocorre apenas uma pergunta burocrática, e quando a percebo, respondo com um gracejo qualquer, como “estou lendo Diário de um Banana”.

Certa vez um colega, na época do fundamental, disse à professora de língua portuguesa que havia terminado Memórias Póstumas de Brás Cubas, ao que ela respondeu que, a partir dali, ele poderia encher o peito e dizer “eu li Memórias Póstumas!”. Pois bem. Não se ganha nada com isso. Pelo contrário, as pessoas podem achar o sujeito que o faz pedante, exibido, afetado. Seja qual for o valor social correspondente, seja qual for a inclinação da vaidade, há algo de fundamental para a existência na leitura de certas obras, e todo esse amor temperado em noites solitárias entusiasma, dá viço. E então há a vontade de se conversar sobre as obras, tal como o personagem das Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto: em seu trabalho sentia uma solidão, sua alma entusiasmada por leituras não tinha espaço para ser. Esse desdobrar externo já não está no escopo literário, que se mantém pronto a compartir generosamente o dom do engenho humano.  

Literatura: futilmente, espicaço-me por dentro quando não guardam a mínima reverência por esta palavra, o que é frequente, afinal pode se referir também, por exemplo, a um agrupado de textos técnicos de contabilidade, ou aos textos modorrentos e insuportáveis da ciência política. 

No começo de tudo, já com certo avanço na adolescência, li de forma episódica o Tartufo, de Molière. Foi um exemplar distribuído pela escola, achei sua capa simpática, e além do mais o fato de ser curto e de ser baseado em esguios diálogos tornou o convite à leitura acolhedor. Depois, li Dom Casmurro, causou-me forte impressão, ainda me assaltam certas passagens. Porém, não via então a literatura com olhar diferente.

O genuíno começo foi a leitura regular de Drummond e Tchekhov. Enquanto a poesia de Drummond combinava com aquelas noites solitárias, me deparei com contos de Tchekhov na tradução de Rubens Figueiredo. Rubens, nome de meu irmão: não conhecia o sujeito, imaginei ser algum jovem e obscuro trabalhador das letras, e li e não senti muita coisa, parecia tudo sem emoção, tempero. Ao mesmo tempo, se mostrava, resoluto, como algo imprescindível.

Depois de narrar uma noturna tempestade, Tchekhov escreve que o céu acordara pálido como se estivesse com vergonha da orgia da noite anterior… Ah, e há aquele conto do professor de letras, de muitas passagens inesquecíveis, como a da música a ressoar dolente nas calçadas, ou quando as mulheres choravam no enterro do professor de geografia, dentre as quais nenhuma o amara; que dizer então do soturno conto do médico que se aloca até um suicida, tom pesado de chofre aberto ao chiste do “puliça”? Ah, o conto do assassinato! Aquela amargura toda, gelo, embriaguez… — talvez sem saber direito, foi a primeira vez que senti o quanto a literatura é fundamental em minha vida.

Simplesmente, a partir disso tudo, não devia não ler: ao final de dias sem leitura, pouca que seja, passa-se a sentir que foram dias desperdiçados. Li depois, em estupor surdo, O Coruja, aparentemente longo e tedioso, mas que, na verdade, acabou por ser uma das leituras mais suaves que jamais fiz, a partir da qual descobria como a literatura era o legítimo terreno da sensibilidade. Curioso: outra obra que patenteia tal feição da literatura é O Ateneu, cujo tema também é ligado à escola. Tenho profunda aversão ao rito de qualificação formal, porém foi graças a tal política pública que pude bater às portas da literatura, por meio de livros distribuídos por minha escola e, por óbvio, da alfabetização, aprimorada depois.

Mais tarde, nutria o desejo, inclinado à noção de dever, de ler Grande Sertão: Veredas o quanto antes, até que peguei um exemplar na biblioteca municipal de Osasco. Adorava ir até lá, errar sem pretensão alguma entre as prateleiras até escolher, sem grande deliberação, um livro. Costumava ler na hora de almoço do trabalho, que era braçal e tinha muita graxa. O pátio da empresa era enorme, aberto e amplo tanto quanto o impassível céu, o ar pleno, e sentava-me em um banco e lia.

Li grande parte do livro de Guimarães Rosa neste banco. Certa vez, na aula do cursinho, um professor, ao falar da amizade, contou todo o final do livro, que então estava justamente em minha bolsa, e lida uma metade. Durante todo o caminho de volta para casa fui dominado por um sentimento de pasmo, espanto, pois antevia uma grandiosidade insuportável. E lá estava ela, a espreita, sendo costurada, embora presente desde a primeira página. Aquele desdobramento era algo banal, o importante sempre é a construção do processo literário, mas o impacto era irreversível, e li o que faltava como o sedento bebe água. Depois da aula, exibindo o livro, comuniquei o caso ao professor, que muito o lamentou. Disse-me na semana seguinte que ficou emburrado por ter feito o comentário.

No fundo, não há importância alguma em entregar o fecho, mas no fato de se tratar de maneira banal algo que requer a cautela de monge e lentidão de lesma. E isso não só no que concerne a comentários avulsos e banais. Quando estive na FFLCH me causava espanto a forma como alguns professores falavam de livros: a saturação de referências a mascarar e a inchar um comentário também banal. Se há o desejo espontâneo de se falar sobre livros entre amigos, há em aula, no tratar de literatura, algo de artificial, sistemático e meramente institucional, preso à engenharia acadêmica de capacitação técnica. Por isso, hoje sou, teoricamente, um gestor de políticas públicas e não um professor de língua portuguesa ou literato. Certo personagem de Osman Lins tem o mesmo sentimento, porém se torna um professor de ciência natural…

Voltando ao livro: por incrível que pareça, passei a me afastar de Grande Sertão: Veredas. Seu código moral, ou melhor, a sua visão de vida é altiva, corajosa, exige ação, tenacidade, grandeza. Seu receituário me é pesado. Torna-se interminável fonte de frases que podem ser destacadas para inspiração, dessas que são repisadas infinitamente tanto em lugares virtuais dos mais apelativos, como também nas superfícies de um trabalho acadêmico. Soltas, essas frases funcionam como mote de um querido e respeitado mestre que sintetiza, em poucas palavras, sábio ensinamento para toda a vida. Por óbvio, tal manipulação das frases não diz respeito ao livro, inegavelmente um dos fundamentais momentos de toda a literatura.

Seja como for, em virtude do temperamento e humor, austeridade, liguei-me ao turrão Graciliano Ramos. Obra de pedra, de tom seco, temperamento azedo, de obsessões e ideias fixas. É de se notar também a extraordinária riqueza léxica de sua prosa, a indicar um esculpir de artesão, rigoroso, com gramática impecável mas que não soa formal e distante do que se está a narrar. Pelo contrário, é possível imergir naqueles estados de angústia, de mania, sentir o odor, ter dilacerada a própria pele. Em Memórias do Cárcere ele diz que o relativo sucesso de Angústia o surpreendeu, afinal a obra cheirava a ratos. Não há espaços para chistes, distrações. Os personagens têm o peso do sofrimento do mundo, mas o sentem de maneira isolada, não teórica ou contemplativa, e o semblante torna-se rude, sua alma espelha um turbilhão desgraçado e infausto. Geralmente, não proferem discursos sobre a vida — o quadro geral é apreendido, espreita-se na atmosfera, não grassando daí fórmulas do bom viver. A vida continua a ser um problema inextricável, chagas sociais se escancaram. É uma linguagem que simplesmente não pode ser mutilada, a fim de se arrolarem frases, destacá-las e distribuí-las para inspirar. 

Há uns anos, li em seguida mais de uma obra de um mesmo autor, Clarice Lispector. Talvez tenha sido a única vez que assim procedi. Impressionou-me em especial A Paixão Segundo G.H., com toda aquela densidade do sentir. O acontecimento, a história propriamente dita, é um dos componentes da literatura, tais quais os personagens, manipuláveis pelo autor. Descobri, com Clarice Lispector, como o cerne de uma obra pode ser estrito ao movimento interior, das memórias e sentimentos, prescindindo de narração de feitos. É curioso Adorno falar na inflexão que teria ocorrido na literatura a partir do século XX, em cujas obras o narrador seria alguém confuso e sem informações na mesma medida do personagem narrado. Já recentemente senti que o narrador de Alice também demonstra estar perdidinho em meio a tantas aventuras.

E certa vez estava a ler Amerika, em pé, no metrô. Uma moça, que carregava uma grande mala, abordou-me. Era a versão da Editora 34, cuja capa, chamativa, é totalmente preenchida pela reprodução do rosto de Kafka. Disse-me que o amava e que não conhecia aquele livro. Perguntei o que ela havia lido. Disse vários títulos. Falei que meu favorito era O Castelo, ela não o conhecia e, não sei o porquê, ficamos por um bom tempo em silêncio. Ela afinal se despediu e saiu. Será que chegou a ler O Castelo? Ela havia falado de A Construção, que, um ano depois, em meio ao terrível, interminável e insuportável período pandêmico, cheguei a ler. Kafka é a plenitude do pensamento, e tal estágio, por óbvio, não ilumina, não necessariamente esclarece…