Apologia das políticas públicas

 02/10/2022

Um grande elogio às políticas públicas é o reconhecimento de que, com orgulho e autonomia, se afastam de seu berço.

A política pública é um desdobramento da ciência política. Contudo, volve o rosto e pretere este fio atávico, por não se reconhecer, depois de constituída, na ciência política, porque, em essência, a política pública não pode prescindir da coesão entre conhecimento, prática e futuro.

A ciência política moderna cria um conhecimento anômalo, técnico, externo às práticas do cotidiano, cujas estruturas completas são um fim em si mesmo, de pura especulação ensimesmada, de modo que um especialista nesta temática pode ser um mestre consumado dentro deste sistema, porém, fora, localiza-se a vida inteira, e toda sua ação cotidiana pode ser, sem constrangimento algum, antípoda a este mesmo conhecimento.

Sob a plumagem do pragmatismo técnico, culto a evidências, seu revestimento externo é, no melhor dos casos, fantasia. E como fantasia tecnicista não dá coisa boa, a ciência política não é uma valorosa ficção. Resta, em sua técnica nua, ser tão somente uma tagarelice sobre a vida, fora desta.

E se o conhecimento não se insere na vida, qual afinal o seu porquê? É um mero capricho, jogo de palavras, artefato de museu bibliográfico. Um sujeito em sua prática cotidiana, inclusive no trato com seus semelhantes, pode simplesmente não viver esse conhecimento.

Por outro lado, por mais que um ruim proceder possa contaminar as políticas públicas, por mais que sejam também um campo superespecializado, repleto de senso comum esclarecido, incontornáveis tendências, autores e escolas, vícios, por mais que aparentemente sejam mero impulso idealista da crença do progresso – por mais que isto e aquilo tudo, em essência o seu conhecimento tem necessariamente uma coesão com o hoje e o amanhã.

Nas políticas públicas, não interessam muito o acabamento e aclamação de sistemas completos, deslocados para fora da vida. Afinal, as políticas públicas redundam num trabalho de uma vida e necessariamente passam pelo escrutínio e alvedrio relacionados ao laboratório social.   

O conhecimento das políticas públicas se lança nos desdobramentos do destino. É uma construção paulatina da virtude em praça pública. E assim, os dados, sistemas, normativos, projetos, conflitos, rupturas, política, o subjetivo etc. não são componentes deslocados no canto, mero reflexo e descrição.

O conhecimento transforma não apenas a visão, mas também o tato.

Tal orientação à prática pode ser revolucionária. Ou melhor, revolucionária na medida do possível, dada a força de nosso regime predominante de vida. Mas, justamente por causa dessa força, qualquer ação de encontro às dominações, por mais que seja incremental, é revolucionariamente transformadora.   

Citemos a atenção básica. Ora, Tolstói odiava os médicos e conhecimentos especializados da medicina. Talvez viesse a admirar a atenção básica, afinal o foco não é na doença, evidencia o modo de vida e respectivas percepções sobre o bem estar, e tal conhecimento orienta o cotidiano de modo contrário, por exemplo, à indústria alimentícia.

Tal singeleza é mais revolucionária do que artigos complexos e ocos, longos, copiosos em referências, sobre autores revolucionários ou escolas, bibliografia americana, currículos prestigiados, títulos, certificações, glória acadêmica, termos cerrados e técnicos etc.

Não. Nada de grandes acontecimentos, figurões e sistemas. No lugar, todo o valor por sobre o trabalho de operários públicos, desconhecidos.