Ao meu amigo Wolfgang Amadeus Mozart

25/02/2023

Embora esteja a música bem ao lado da alma, a falar sua língua, tenho a consciência de que só a literatura, com clarividência assustadora, dá as linhas de minha vida. Vi meu infortúnio no de André de O Coruja. A música guia o sentimento, mas estes assomos espirituais de grandeza e sensibilidade são castelos no ar, a rigor. A vida são minhas circunstâncias, rotinas, contextos.  Vêm-me à memória, assim, aquelas passagens intrincadas de O Castelo e, sobretudo, de Amerika. 

Basicamente, Karl trabalha de ascensorista, é espicaçado pela organização dos homens e pela vida a esta ligada. De repente, estará destruído, não sendo necessário final para isto — desaparecerá feito folha em meio aos desencadeamentos inextricáveis do porvir. Sim, mas isto não quer dizer que Kafka retrata um ambiente totalmente seco, ríspido, sem afeto e compaixão. Pelo contrário, nas frinchas de seu fado, lá estão a bondade e carinho ao Karl direcionados por sua chefe. Com zelo, o trata bem, quer lhe um futuro bom, sem nada em troca. Frinchas, porém: o desencadear lhe é incontornável, a queda, certa, debalde tudo o que se pode ter do bom e do belo.

Sempre fiz pouco caso das dedicatórias, sessão de agradecimentos, miniaturas de teses e dissertações, as via como mera hipocrisia, epígrafe a anteceder torrente de impessoalidade. Certa vez me encantei ao achar um livro na biblioteca da faculdade chamado “O meu mestre imaginário”. Fiquei decepcionado ao ver que, logo de dedicatória, havia a alusão ao Silviano Santiago, justamente, nas palavras do autor do texto, seu mestre. Ora, conversa fiada, afinal, se Silviano Santiago é mestre, então não é imaginário. Insuperável e genuína dedicatória é a do Murilo Mendes:

ao meu amigo

Wolfgang Amadeus Mozart 

Porém, acabei por fazer dedicatória. Em trabalho de menor relevância do que mesmo uma dissertação. Seja como for, não poderia não fazê-lo. É a uma pessoa de valor inestimável, cujo temperamento e entrega aplacam o absurdo do mundo, porque na sua grandeza o absurdo é vencido. Seria isto uma ilusão? Presumo que não se trata de trajeto fácil, destituído de arestas colossais de sofrimento, mas vejo em seu olhar o triunfo da vida.