05/12/2023
i. Do discurso da culpa:
— Sim, não nego, eis uma cadência ensimesmada, tediosa e fleumática. Pode denotar outras coisas inglórias. Do lado filosófico, repiso exausto a questão do que é fechado, a associação disto com o caráter do que é demoníaco. Mas, só. De minha parte, o terrível do demoníaco é a crueldade diante do outro, é o massacre, o sangue deliberado, a violência, o escárnio, a humilhação. A acídia, por seu lado, é mero pântano de luz opaca, não hostil a insetos mesquinhos, leito fértil de toda sorte de vida insignificante. E não me imagino transfigurado, as próprias mãos a erigir uma diferente vida. Tanto em termos práticos quanto em termos intelectuais, de nada me servem aquelas belas lições de mestre salpicadas em Grande Sertão: Veredas.
ii. E eis o chacal de olhar arguto. Mas, principalmente, o discurso de ponta afiada, lacônica, o raciocínio abruptamente inteligente:
[Seu aspecto denota certo desleixo, desleixo talvez calculado, à espreita de algo. As mechas loiras dispostas caoticamente e a barba desalinhada compunham beleza selvagem e desarmônica, conjunto a um só tempo sedutor e espirituoso.] – Saiba: você é o único amigo que tenho. Por isto, não pode acidente ceifar a sua vida. Sinto de longe este viver acanhado, sim. E se a fortuna assim permitisse, tomaria a mim o que perdeu.
[Deu que, em uma noite, lá estava a florescer com linhas e cabelos uniformes, aspecto delgado, de beleza harmônica e domesticada.] — Tenho provado do elixir esplendoroso do prazer. Delírios da vida frenética: todo este movimento me cansa o corpo, é verdade. Mas, estou feliz.
iii. A noite era então uma fumaça. Quis ele prolongar o patético espetáculo, e cada detalhe minuciosamente narrado me espicaçava. De repente, senti que tinha ele tendência a ser, agora, prolixo.
Automóveis, mecânicos transeuntes, lojas fechadas, em certos corredores se insinuava iluminação vulgar colorida, provavelmente de prostíbulo.
No tombar da noite, em especial às sextas, paira no espaço atmosfera de despedida. As lojas fecham a persiana, as calçadas de bares se apinham de gente, pelo menos as preocupações cotidianas se amainam um pouco, com o alívio do opresso cotidiano do dia útil, quando não liberado espaço para toda sorte de prazer e delícia.
Antes, as primeiras variações falavam da falta de traquejo, da timidez, e a existência era largada, quase por revolta. Se confidenciava. E os aborrecimentos nos eram espelhados. De repente, os contornos se definiam, e pulsava o florescer de uma forma bela, brilhante. Mantinha-se o mote da face amiga, os abraços e carinhos bem humorados, gracejos, ditos irrepreensíveis, absurdos que fossem. Em suma, amizade, um estar ainda muito aprazível.
A rigor, o discurso da eloquência retrata uma banalidade. Por que obsedaria? Seja como for, não valem a pena as voltas infindáveis, o giro fraterno não eram senão variações de algo que, de premissa, não pode ser. À face de certa variação se estala a consciência da impossibilidade.
Afinal então o silêncio já era bem mais pesado do que o que se tinha a dizer. E o ar noturno não abrigava sentimento inebriante de aventura, tampouco estar desembaraçado. Era simplesmente fumaça. Buscava somente fugir, ignorar por completo a existência de toda aquela armação circense. Encerrar a própria persiana, mergulhar na pausa como se fosse no vazio do fim.
Juro não saber se adeus em alemão, em francês ou em português tem dimensão, peso diferente.
Dentro do adeus não sinto o descortinar de drama ou a solenidade de discursos e de justificativas. Apenas rememoro dia em que o entardecer subia preguiçoso, o ar verde revigorava o peito, havia a estimulante possibilidade de se deparar com riachos e berços da natureza, e o corpo cansado não fazia tremer a plena tranquilidade de tudo o mais, a absoluta franqueza e estima recíproca, o sorriso sem sombra.