19/08/2024
Foi sentir em torpor que atravessei a cidade sonolenta em meio ao nascer daquele domingo, a vida das coisas nítida. Na calçada defronte, vindo do fundo irreal da avenida, caminhava um casal, a fingir discussão qualquer. Na ciclofaixa figuras dentro do sono do movimento corriam, andavam, passavam de bicicleta, fechadas em fones de ouvido. No transporte da madrugada de shows, bailes e festivais retornavam para casa alguns, assim como alguns outros do trabalho, tão paralisados pelo sono que perdiam a chegada à própria estação. Observava os rostos, as expressões, os cortes de cabelos em dégradé, e tudo soava ser.
E igualmente em torpor a noite de meu retorno me recebeu com fina chuva e treva. E um carro quase que esmaga um motoqueiro, que ficou prostrado sobre o chão, sob a motorista perplexa sem saber pedir socorro. Igualmente sem saber agir, travado na calçada fiquei, talvez perplexo pela minha própria paralisia, alheia àquilo, faiscada em luz à visão do acidente.
Durante o dia hesitei sobre as meras coordenadas de onde pisava, errei pelas margens da avenida, avistei grandes empreendimentos, galpões e mercado. Nos intervalos se apinhava gente jovem nos corredores, rumor das justificativas sempre tão prontas e acabadas, as projeções das ambições e do sucesso. Já a conversa das ruas daquele subúrbio se acentuava com a fumaça de churrasqueira, com alarido visual das lojas e padarias, com o som difuso das televisões e rádios, com o estrépito de motores e freios, e subiam do barulho suburbano dizeres espirituosos sobre o rebaixamento do Cruzeiro.
A grande distância do retorno físico era a distância ainda maior de uma espera concreta. Temia que um incidente qualquer atrapalhasse a chegada, inclusive no perturbar da pontualidade, bem sabendo, contudo, que chegar era inútil. A ideia fixa não era uma mania engenhosa, artifício de criador. E a falta de fé não era falta de hábito beato. Quem sabe se o descrente não seja o principal a sentir fome de divino, depois de ter tentado requintar os seus modos diante de Deus, Deus este que o houvesse negado.
Aquela inquietude passada talvez seja a de hoje, que tem o apelo do que, do passado, fez a construção de um argumento novo. E assim, a lamúria passada parece ser construída surda e vagamente, enquanto o lamento do presente arrepia no tato, com o peso de insucessos concretos.
A ideia fixa é um pesadelo. Sobre tudo não badala nenhum sino.
Não foi em devaneio que a vi curvada, alheia. Talvez então ela não ouvisse a algazarra ao redor, certamente naqueles últimos minutos do intervalo retornava de forma desprendida. Ela não era em vestes majestosas; embora pudesse ser soberbamente altiva com seus gestos, era majestosa no esquecimento, e em meio a um lapso forjou em pedra a loucura e o delírio. E neste instante de perdição a vi. Mas prosseguia a linha do tempo, no vazio da incomunicabilidade se esgueiram sustos e sobressaltos da visão de tudo.
Posso até extrair um aprazível gosto ao encenar o patético de uma figura lamentosa, repetir o velho caminho da inquietação, me distrair com as ambições materiais, os interesses sazonais, as promessas de alegria, as reflexões astuciosas. A tenacidade do movimento inquieto se desenha enquanto treva nas paredes do claustro. A ideia fixa é um pesadelo.
O dia se encerra abruptamente, com fumaça e chuva esguia tudo é peso de sombra encharcada, faróis escorrem frenéticos e trêmulos pela avenida, em certas esquinas alguém se fere, ecoam noutros lados gritos exaltados.